_Caio..._ pedi prevendo sua reação explosiva.
_Não acredito que você me arrastou pra essa merda pra ver esse viado trepando!
_Cala boca, Caio!_ falou Tiago indo pra cima dele.
Caio foi mais rápido e desceu a escada ficando do lado oposto ao nosso na sala. Eu senti Rafael largar minha mão. Caio tinha atingido ele. Rafael já tinha encarado o afastamento e os olhares de preconceito, mas ninguém tinha verbalizado isso com ele ainda.
_Eu que não vou ficar aqui pra assistir essa merda!_ falou indo em direção à porta.
Tiago fez menção a segui-lo, mas eu o segurei.
_Deixa ele ir._ falei.
Caio e Tiago me olharam. Eu aguentava as grosserias de Caio, mas não deixaria ele atingir Rafael com elas.
_É até melhor._ falei.
Caio se virou para mim com raiva nos olhos ainda.
_Ele não queria vir, nem eu o queria aqui._ continuei _Não tô com saco pra aguentar as criancices dele nesse fim de semana. Então, deixa ele ir. A gente só tem a ganhar.
Caio saiu correndo porta à fora, mas não sem antes me lançar um olhar de ódio mortal. Lógico que magoava falar daquele jeito com meu irmão mais novo, mas eu realmente não estava com paciência para aquilo e eu o conhecia muito bem para saber que passar a mão na sua cabeça não era bom para nenhum de nós dois.
_Onde esse doido vai?_ perguntou Tiago preocupado.
_Deixa. Estamos longe de algum ponto de ônibus, ele não tem carro, e é muito orgulhoso para pedir carona. Daqui a pouco tá de volta.
_Mas ele está sob a minha responsabilidade.
_Você não devia ter trazido ele.
Ele me olhou culpado e eu dei de ombro, o que estava feito estava feito. Ele e Laura subiram as escadas para guardar suas coisas nos quartos.
_Ai que vontade de bater no seu irmão!_ falou Alice.
_Nem me fale!
Ela saiu pra área de churrasqueira pra ficar junto com os outros, que aparentemente não ouviram a briga. Rafael estava com um olhar abatido.
_Não se deixe levar, amor. Ele é assim, revoltado com tudo._ falei lhe abraçando.
_Eu sei, você já tinha falado._ ele suspirou _Eu só estou pensando no quanto eu fui burro e inocente achando que todo mundo ia nos aceitar tranquilamente.
_Deixa pra lá._ respondi lhe dando um beijo na bochecha _O problema são os outros, não a gente.
_Eu sei..._ respondeu ainda triste.
Segui o puxando para junto dos nossos amigos, onde Pedro já comandava a churrasqueira. Bruno e Alice se revezavam para cozinhar o arroz, um xingando o outro falando que estava fazendo errado. O resto nós apenas ria e bebia, caindo na piscina de vez em quando. Paulinho não conseguia disfarçar que estava de quatro pela minha irmã, mas ela não lhe deu bola, apesar de não ter sido grossa com ele. Primeiro, porque ele não fazia seu tipo, e segundo, porque ela ainda estava se curando do que tinha acontecido. Nunca perguntei sobre o pai do bebê, mas com certeza, para chegar ao ponto que chegou, a relação não deve ter terminado bem.
Ninguém perguntou “uai, e seu outro irmão? Não ia vir também?”, o que significava que provavelmente Alice já tinha os alertado sobre a delicadeza do assunto. Ninguém tocou no nome de Caio, embora eu visse Tiago preocupado. Eu também estava, claro, mas de alguma jeito, eu sabia que ele voltaria por pura falta de escolha.
Rafael se divertia, interagia, nadava, jogava vôlei, trocava de lugar com Pedro na churrasqueira, mas eu o conhecia muito bem para saber que ele não estava cem por cento. As palavras de Caio, por mais breves que tenham sido, feriram Rafael. E isso me machucou muito mais do que qualquer coisa que Caio pudesse ter me dito. Eu passei anos construindo um escudo para aquele tipo de coisa, Rafael não. Eu conhecia muito bem Caio para saber até onde seu discurso era só ódio aleatório, Rafael não. Eu queria alertar Rafael sobre tudo aquilo, mas não podia ali, na frente de todos, pois só daria mais importância a Caio.
O momento certo veio com o cair da tarde. Como todos nós tínhamos acordado bem cedo pra viajar, estávamos cansados e resolvemos cochilar um pouco no final de tarde, assim estaríamos bem pra varar a noite conversando e bebendo mais. Eu e Rafa fomos para o nosso quarto e fomos tomar um banho. Embaixo do chuveiro, enquanto trocávamos beijos, um ia ensaboando o corpo do outro com muito cuidado. Estávamos muito excitados, mas no momento nos contentamos em masturbar um ao outro. Nos secamos e deitamos só de cueca na cama. Eu acariciava seus cabelos com muito cuidado e ele estava quase adormecendo.
_Amor?_ chamei.
_Humm..._ respondeu sem abrir os olhos.
_Lembra daquele dia no hospital em que caí da escada e mostrei meus hematomas?
Ele abriu os olhos curioso com o assunto.
_Lembro...
_Os hematomas que o pai do Tom me deu ao me espancar?
_Por que você está se lembrando disso agora?
_Não sei. Nós nunca conversamos sobre isso, acho importante.
_Isso tem algo a ver com seu irmão?
_Sim...
_Bernardo, o que foi dito foi dito, não tem como voltar atrás.
_Deixar eu falar.
Ele esperou pacientemente que eu começasse. Eu reunia forças para relembrar daquele dia terrível.
_Foi um dos piores dias da minha vida. Não foram apenas agressões físicas, mas ele gritava coisas horríveis também. Não acho que vale à pena repetir aqui tudo o que ele me disse, mas você pode imaginar. Dito isso, eu gostaria de te dizer duas coisas. Primeiro, eu entendo como você se sentiu com tudo o que Caio disse. Eu sei o quanto isso bate lá no fundo e o quanto dói. E, infelizmente, não tem cura pra isso, tudo o que podemos fazer é seguir em frente.
_E a segunda coisa?
_A segunda coisa é que ao comparar os dois discursos, o do pai do Tom e o do Caio, fica bem claro para mim que o que meu irmão está querendo é só chamar atenção. Nem sei se ele se dá conta disso, que esse seu jeito de odiar tudo no automático é só uma maneira desesperada dele pedir socorro._ fiz uma pausa e então continuei _Não estou defendendo ele, muito menos pedindo pra você fingir que está tudo bem. Meu ponto é que ele não é uma má pessoa, apenas não se deu conta disso.
_Eu sei que é seu irmão, mas..._ Rafael ficou sem jeito de falar mal dele para mim e pareceu desistir _Eu só gostaria de ter a fé nas pessoas que você tem.
_Não acho que eu tenha tanta fé nas pessoas assim.
_Tem sim. Eric, Pedro, sua mãe... Todos eles te machucaram de alguma forma e você arranjou um jeito de ver o lado bom neles.
_Eu também te machuquei...
_Não é a mesma coisa, amor._ ele respondeu fazendo um carinho nos meus cabelos _Você fazia péssimas escolhas às vezes, mas nunca foi uma má pessoa. Você nunca quis me machucar, você apenas tentou se proteger. É diferente.
_Acho que você tem muita fé em mim._ comentei rindo.
_Lembra do que te disse quando fui embora da festa dos seus pais na noite que terminamos?
_Você disse tanta coisa...
_“Você é a pessoa mais fantástica que eu já conheci na vida. Eu espero que um dia você perceba isso.”
_Eu lembro disso..._ respondi rindo.
_Você ainda não percebeu o quão fantástico você é?
_Sou?
_É! Eu acho que esse cara que eu estou vendo agora, por quem eu verdadeiramente me apaixonei, estava escondido aí dentro em algum lugar.
_E como esse cara por quem você se apaixonou é?_ perguntei rindo.
_Ele é o cara mais forte que eu conheço. No dia do meu vexame na festa do Pedro, ele foi pro centro da confusão e ficou ao meu lado. Quando descobriu que seus sogros não eram seus maiores fãs, ele ficou pra jantar do mesmo jeito. Quando sua mãe tentou machuca-lo, ele se manteve firme na ideia que ele não era o problema._ ele sorriu pra mim _Esse cara parece ser capaz de enfrentar o mundo todo de peito aberto.
_Você fala como se você não fosse o cara mais incrível que eu já conheci._ respondi um pouco envergonhado _Parece mentira o jeito como todos caem apaixonados por você!
_É tudo fachada._ ele respondeu rindo _As pessoas desapaixonam rápido quando se acostumam ao meu jeito.
_Eu nunca deixei de te amar, nem por um segundo.
_Nem eu.
Ele se deitou em cima de mim e me deu um beijo suave, o qual eu correspondi. Em poucos segundos, já estávamos bastante excitados e nos esfregando um no outro. Rafael foi descendo beijando suavemente todo o meu corpo. Quando ele chegou à minha virilha e estava prestes a tirar minha cueca, ouvimos alguém subir apressadamente a escada e bater a porta de algum quarto com força. Paramos para prestar atenção e eu consegui ouvir a voz de Caio e Tiago brigando no quarto, embora não desse pra entender suas palavras. Já tinha dado para mim. Saí debaixo de Rafa e comecei a vestir minha roupa.
_Não vai, amor._ ele pediu _Você só vai estar dando audiência.
_Não disse que eu sou forte?_ respondi _Pois bem, você vai ver o quanto agora.
Ele não respondeu nada, apenas deu um longo suspiro e se jogou na cama novamente. Saí do quarto e me dirigi ao que Caio e Tiago estavam. Todo mundo parecia estar nos quartos de porta fechada, mas eu duvidava muito que ninguém estivesse ouvindo. Era a mesma briga de sempre: Tiago gritava sobre a importância de nós apoiarmos um ao outro e Caio gritava seu usual discurso de ódio.
Tiago!_ chamei quando entrei no quarto.
_O que?_ perguntou desviando sua atenção para mim.
_Deixa eu conversar com ele a sós.
_Eu que trouxe ele, Bernardo, ele é minha responsabilidade.
_Por favor.
Ele pareceu relutar um pouco. Caio continua a nos encarar com raiva.
_Mas eu vou estar aqui fora, qualquer coisa me chama.
_Certo.
Ele saiu do quarto e, quando ele passou pela porta, rapidamente a fechei e tranquei. Tiago voltou imediatamente e bateu na porta me pedindo para abrir, mas ignorei. Joguei a chave num canto e me dirigi a Caio. Ele me olhou curioso enquanto eu mantinha uma impressão impassível no rosto.
_O que você quer?!_ ele perguntou raivoso.
Não houve resposta, o que houve foi um soco certeiro em seu rosto. Ele caiu atordoado no chão do quarto.
_Esse foi pelas coisas horríveis que você disse para mim e para o meu namorado!
_Seu filho da...
Antes que ele pudesse terminar, eu já me agachei no chão e lhe dei mais um soco.
_Esse é por ter estragado meu fim de semana!
Mais um soco.
_Esse é por ser uma merda de irmão!
Mais um soco.
_Esse é por todos os seus olhares debochados e suas piadinhas de duplo sentido sobre mim!
Depois disso, os motivos se embaralharam na minha cabeça. Eu apenas batia. Ele apenas tentava se defender, mas não conseguia me atingir. Sim, eu estava com raiva, mas sabia muito bem o que estava fazendo. Eu lhe dei a chance de aprender a me respeitar pela via mais fácil, ele não quis.
_Bernardo! Abre! Bernardo!
As vozes de Alice e Rafael faziam coro com a de Tiago enquanto batiam na porta. Não respondi. Deviam estar todos de pé ali, pois agora era impossível negar que estivessem ouvindo qualquer coisa. Ignorei tudo isso. Continuei ali batendo nele, mas eu me concentrava em seus braços e ombros, não tinha a intenção de machuca-lo de alguma forma mais séria. Eu queria apenas acordá-lo. Em algum determinado momento, aquele exercício todo me cansou. Eu me levantei, e bati na porta.
_Nos deixem sozinhos!_ gritei para eles.
Houve respostas de protestos, mas não abri a porta. Logo eles desistiriam. Me sentei na cama e olhei para a figura patética do meu irmão caído no chão em posição fetal. Ele chorava muito e gemia baixinho de dor. Eu percebi que chorava também, mas não era pena. Era alívio. Eu devia ter feito aquilo a muito tempo.
_Não me importa quanto tempo ficaremos aqui._ falei para ele, que não me olhava _A gente só sai quando você me pedir desculpa por tudo.
Rafael tinha razão: agora eu era forte. Eu não deixaria mais ninguém passar por cima de mim e me humilhar, fosse meus sogros, minha mãe ou meu irmão mais novo. Eu nunca mais daria aos outros o poder de me fazer mal.
Enquanto eu encarava a triste imagem do meu irmão caído no chão e gemendo de dor, dor que eu senti prazer em provocar, eu me perguntei pela primeira vez se eu estava no caminho certo. Era assim que deviam ser as coisas? Era assim que eu queria ganhar aquela guerra?
As atitudes de Caio foram extremas? Foram. Mas espancá-lo era realmente a melhor solução? Com aquilo eu não estaria apenas aprofundando ainda mais o poço que se criou entre nós a partir do momento que eu me assumi para ele? Sem dúvidas ele merecia algum tipo de punição, ou ao menos algo que o sacudisse e o trouxesse para a realidade. Mas eu tinha ido muito longe?
_Precisamos sair daqui, Caio. Mas só vamos depois de nos entender._ falei lutando para manter a voz firme.
Todo o alívio que senti lhe batendo antes, tinha dado lugar a uma profunda dor de arrependimento. Afinal, o sangue que escorria pelo seu nariz era o mesmo que o meu. O que eu estava fazendo com meu irmão?
_Caio..._ falei me aproximando sem jeito.
Ele só chorava e fungava alto, com o rosto escondido entre os braços. Eu fui chegando perto com cuidado. Ele recuou quando encostei nele, provavelmente achando que eu ia bater mais. Peguei nos seus cabelos e tentei afastá-los do seu rosto, mas ele se virou, talvez para me impedir de vê-lo chorando, o que era inútil. Insisti. Me sentei ao seu lado no chão e o abracei. Ele relutou um pouco, mas ficou imóvel. Por fim, ele aceitou o meu abraço, apesar de não me abraçar de volta. Ele chorava no meu colo e eu acariciava seus cabelos.
_Nós não podemos continuar assim, Caio...
E ele chorou mais forte. Eu entendia. Ele não estava chorando por conta da surra, estava chorando por tudo. Todo aquele ódio que ele insistia em sentir e despejar nos outros era muito pesado. Não devia estar sendo fácil para ele. E eu sabia o quanto era escuro e solitário lá no fundo poço.
_Você está jogando a sua vida fora, Caio. Quando você acordar, pode ser tarde demais.
Todo seu ódio era só uma máscara sobre seus medos, e eu entendia tão bem sobre mascarar o medo...
_Eu sei que você não me odeia. E você não odeia Rafael. Você não é homofóbico. Você acha que pode me odiar simplesmente por ter descoberto que eu faço parte de um grupo dessa sociedade que tanto te incomoda. Mas esse não é um bom motivo para odiar ninguém._ dei um suspiro longo _Esse ódio todo que você traz dentro de si está te impedindo de ser feliz, está te impedindo de viver. Se você não gosta do mundo que te cerca, então lute para muda-lo. Essa sua postura agressiva não ajuda ninguém, muito menos você mesmo.
Ele não me respondia, apenas chorava, mas bem baixinho agora. Eu sabia que ele estava absorvendo com cuidado tudo o que eu falava.
_Eu já estive no seu lugar e sei o quanto dói. E eu tive que apanhar muito da vida para aprender. Como seu irmão mais velho, eu estou aqui para te mostrar o caminho mais fácil. Você não precisa passar por tudo o que passei.
Eu me identificava em cada palavra do que dizia. Por motivos diferentes, e permissividade no lugar da agressividade, eu já tinha estado no lugar que Caio estava.
Sabe como eu saí do fundo do poço? Eu comecei de novo. Por que não começa também?_ ele parou de chorar, apenas ouvia agora _Começando por mim. Não precisamos de palavras emotivas para fazer as pazes, não faz o estilo de nenhum de nós. Vamos apenas esquecer tudo o que ficou para trás, as agressões físicas e verbais. Vamos começar do zero. Eu quero voltar a ser seu amigo.
Eu terminei meu discurso com um beijo no alto da sua cabeça, o qual ele não reagiu (para bem ou para o mal).
_Pense sobre tudo isso. Se estiver disposto a mudar, eu estou disposto a te dar a mão nessa jornada.
Em nenhum momento daquela conversa, ele me olhou. Mas também não soltou nenhum xingamento em resposta, o que era uma baita vitória.
Deixei ele refletindo sobre tudo o que eu disse e então saí do quarto. Tiago me esperava no corredor pronto para me dar uma bronca.
_Você enlouqueceu, Bernardo? Bater nele desse jeito?!
_Eu perdi a cabeça, desculpa.
Ele ia entrar no quarto para ver como Caio estava, mas eu o segurei.
_Ele precisa de um tempo para refletir sobre tudo o que eu disse. Deixe ele sozinho um pouco. Vai lhe fazer bem.
Meio que contrariado, Tiago concordou e desceu. Eu me dirigi ao meu quarto, onde Rafael me esperava deitado.
_E então?_ ele me perguntou.
Eu tranquei a porta com cuidado, tirei minha roupa ficando só de cueca e deitei ao seu lado na cama. Ele me aninhou em seus braços e eu comecei a chorar.
_O que foi, amor?_ perguntou Rafael preocupado.
_Eu não quero ser assim! Eu não quero ser essa pessoa!_ respondi chorando.
Ele me abraçou forte e deixou que eu me acalmasse.
_Você se arrependeu de ter batido nele?_ ele perguntou.
_Sim...
_Por que você bateu nele?
_Porque eu perdi a paciência com ele. Mas ele é meu irmão! Eu não posso forçar ele a mudar na base da porrada. Se fosse assim, quem eu seria? Eu seria o pai do Tom!_ falei voltando a chorar.
_Você não é, Bernardo!_ ele falou me sacudindo _Você não passa nem perto de ser uma monstruosidade dessas. Você perdeu a sua calma, ele vinha te provocando a muito tempo. E você se arrependeu.
_Rafa...
Eu precisava lhe fazer a pergunta que passou a me atormentar.
_Você disse que eu me tornei uma pessoa mais forte. Mas eu me tornei uma pessoa melhor? Porque antes eu nunca teria feito uma coisa dessas.
_Que bobagem, Bernardo. Lógico que você se tornou uma pessoa melhor.
_Será mesmo? Será que essa força toda que eu ganhei não me cobrou um preço muito alto? E se foram as minhas atitudes que inflaram as ações do Caio? E se só fiz a reação da minha mãe pior ao bater de frente com ela? E se eu tivesse engolido meu orgulho e te ajudado com Carolina? Você teria feito o que fez na festa de Pedro e estaríamos numa situação bem melhor agora...
Ele, sem uma resposta muito boa para aquilo, se contentou a continuar acariciando meus cabelos.
_Será que eu não tô abrindo mão de uma coisa muito maior em troca de “força”?
Instantaneamente, me lembrei das palavras do meu pai:
“...Viver não é fácil, Bernardo, não é simples. Todos nós temos nossa parcela de medo, de defeitos, de mágoas. Todos nós temos demônios só nossos. E você tem os seus, eu entendo e respeito. Mas isso não lhe dá o direito de se revoltar contra essa família... Sua personalidade é uma combinação de fatores genéticos e de elementos da criação que te demos, sem dúvida. Mas é a sua personalidade, só sua. É ela que faz de você uma pessoa tão diferente dos outros. Então, pare de jogar todos os seus problemas na sua personalidade. É quem você é e pronto. Aprenda a conviver com seus defeitos... E daí que você é prestativo, que está sempre disposto a ajudar alguém? Isso não é defeito. Isso nunca te prejudicou... Não faça a idiotice de negar a sua própria personalidade, porque isso só te trará sofrimento no futuro.... Você está destinado a ser grande... E você está tentando abrir mão dessa sua grandeza. Não faça isso. Sua sexualidade pode ter algum papel na formação da sua personalidade, mas esqueça essa ideia errada de abrir mão de todos os seus defeitos, pois são exatamente eles que fazem de você a pessoa que você é. Estar sempre disposto a ajudar os outros, mesmo que isso signifique deixar seus próprios problemas de lado por um instante, é a chave da sua grandeza... Um dia eu não vou estar mais aqui... Nesse momento, Bernardo, você vai assumir meu lugar. Você vai ser o pilar dessa família“
_Não sei, amor..._ falou Rafa, enfim _Talvez exista a resposta esteja no meio termo. Talvez sua próxima missão é achar essa calibragem...
_Talvez...
Falando da minha mãe, principalmente, eu já tinha dado meu recado e ela tinha entendido. Era chegada a hora de guardar as facas e sentar para uma conversa civilizada. Aquele era, necessariamente, o próximo passo do nosso relacionamento. Afinal, para dar dois passos em frentes, às vezes é preciso recuar um passo.
[...]
Quando acordei mais tarde naquele dia, já estava escuro e eu ouvia a vozes de todos lá embaixo jogando conversa fora. Me vesti e, ao sair do quarto, me deparei com Alice segurando uma sacola no corredor.
_Pegou meio pesado, hein, garotão?_ falou se referindo a Caio.
_Eu sei...
_Toma._ falou me entregando a sacola.
_O que é isso?
_Tiago foi até a farmácia comprar curativos para Caio e me pediu para ir fazê-los. Rafael me contou sobre sua conversa com ele após a briga. Talvez você seja a pessoa mais indicada para fazer.
Peguei a sacola relutante. Não sabia se Caio estaria bravo comigo pela surra.
_Estamos esperando vocês lá embaixo._ ela falou.
_Certo...
Entrei no quarto que Caio dividia com Tiago e estava tudo escuro. Eu o conhecia muito bem para saber que, apesar de deitado e coberto, ele não estava dormindo. Acendi a luz e ele foi obrigado a me olhar. Eu não tinha batido muito no seu rosto, então não tinha grandes hematomas, apenas alguns cortes com sangue seco. Meu estômago embrulhou com a percepção que fui eu que tinha feito àquilo ao meu irmão. Mas no seu olhar não havia mais ódio, havia um pedido de socorro.
Vem, deixa eu cuidar disso._ falei me sentando na cama.
Ele se deitou de barriga pra cima na cama e fechou os olhos, deixando que limpasse com cuidado os seus machucados. Nenhum de nós falou nada durante todo aquele ritual.
_Vamos descer um pouco?_ perguntei quando terminei.
_Preciso tomar um banho.
_Certo, a gente te espera lá embaixo.
Quando desci, tranquilizei Tiago sobre a situação. Não demorou muito e Caio desceu. Foi um pouco estranho no começo, porque todos sabiam o que estava acontecendo, mas ninguém falou nada. Todos se esforçaram ao máximo para salvar aquele fim de semana. Caio praticamente não falava nada, mas isso poderia ser considerado uma vitória dado o seu histórico. Percebi que Caio ficou muito impressionado com Mariana, e ela deve ter percebido também, mas ficou cada um na sua. Daquele mato ainda sairia cachorro...
Dentro do possível, o resto do fim de semana transcorreu em paz. Caio até interagiu um pouco. Por via das dúvidas, Rafael manteve uma distância segura dele, afinal, não era bom arriscar. Do mesmo jeito, eu evitei qualquer aproximação mais carinhosa com meu namorado na frente dos outros. Além de Caio, eu ainda tinha vergonha de ficar com ele na frente de todo mundo. Ele não tinha vergonha nenhuma, mas entendeu que era o melhor a se fazer naquele momento. Toda vez que eu falava mais alto com alguém, Pedro soltava um “cuidado que ele vai te bater, hein”, mas, tirando isso, não houve menção ao que aconteceu naquela tarde comigo e Caio.
No futuro, eu e Caio conversaríamos sobre o aconteceu ali, mas não era hora. Ele tinha muito o que refletir consigo mesmo ainda para entender algumas coisas, do mesmo jeito que eu precisava buscar encontrar um equilíbrio para que não voltasse a acontecer coisas como aquelas. Por hora, passamos uma borracha em tudo e seguimos em frente, prontos para o próximo passo da nossa relação como irmãos.
Daquele fim de semana, me ficou a lição que eu não podia explodir com todos. Eu precisava achar um ponto de equilíbrio: nem deixar que pisassem em mim, nem deixar que trouxessem à tona o pior da minha personalidade. Era a estratégia que eu adotaria com minha mãe a partir de então.
_Pra você._ falei depositando uma sacola na mesa da cozinha quando chegamos em casa no domingo à noite.
Minha mãe olhou desconfiada para mim e para a sacola.
_Mangas. Você sempre gostou das mangas que a gente pegava lá na casa, lembrei de você.
_Hm... Obrigada._ respondeu um pouco desconcertada.
Nas últimas semanas, ela tinha se acostumado comigo ignorando sua presença, assim, a peguei de surpresa. Antes que se instaurasse um silêncio constrangedor, saí da cozinha. Seria necessário passos de formiga com minha mãe, mas eu estava disposto a ir com toda a calma do mundo com ela. Agora, mais do que nunca, eu dava valor à minha família.
No que diz respeito à minha família, as coisas esfriaram um pouco nas semanas seguintes. Minha mãe não voltou ao normal comigo, mas nossa comunicação já atingia o nível básico de civilidade. Num mundo perfeito, eu teria a colocado contra a parede e tido uma conversa definitiva sobre a minha sexualidade, mas resolvi não seguir por esse caminho. Minha estratégia passava por deixar que ela visse eu e Rafael como um casal como outro qualquer, o que me traria de volta para dentro do campo que ela chama de “normalidade”.
Não, eu ainda não tinha apresentado Rafael formalmente aos meus pais, e não sabia quando ia ser. Contudo, eles sabiam que existia “alguém” na minha vida. A poeira precisava abaixar primeiro, pois aquele era um movimento muito brusco. Diferente do nosso primeiro namoro, Rafael não ficava insistindo nisso, pois ele sabia que a situação era outra. Mais: ele tinha sentido na própria pele que o mundo não é muito amigável quando você se assume diferente.
Entre os nossos colegas, a situação permaneceu a mesma. Quem já estava do nosso lado, continuou, mas não conquistamos novos fãs. Não éramos hostilizados na faculdade, mas era perceptível que alguma coisa tinha mudado. Confesso que doeu menos do que eu esperava. Eu sempre tive um medo louco daquela situação se concretizar, e agora que isso acontecia, era quase indolor. Acho que eu tinha problemas tão maiores em casa, que o resto era resíduo. Rafael, por outro lado, era fortemente atingido por aquela situação, o que me atingia indiretamente. Era a primeira vez que ele sofria preconceito.
Pensando bem, não sei nem se podemos chamar o que aconteceu de preconceito. Claro, gerava estranheza, mas essa não era a causa principal. O grande problema é as pessoas viam a situação como nós dois versus Carolina. E ela era a vítima perfeita: linda, simpática, simples, e prestes a ficar órfã de mãe. Eu e Rafael: traidores, criaturas guiadas apenas pelo instinto sexual, duas caras. E pra piorar, Carolina trancou a matrícula, resolveu passar os últimos meses ao lado da mãe. Seu sacrífico só fez contribuir com seu papel de vítima (e o nosso de vilões).
Tirando uns eventuais olhares tortos, não éramos atacados pelos nossos colegas. Até aquela festa.
Já estávamos na segunda metade de setembro. Uma das nossas colegas resolveu comemorar seu aniversário fechando uma boate para seus convidados. Ela deve ter convidado a faculdade inteira, então, eu e Rafael estávamos inclusos.
Como sempre nas últimas semanas, nós ficamos com meus amigos, que àquela altura do campeonato já eram amigos de Rafael também. Conversávamos numa rodinha num canto mal iluminado da boate.
_Você não conseguiu falar com a Carol mesmo?_ perguntou Bruno.
_Não._ respondeu Rafa dando um gole na sua bebida _Eu entendi o recado que era pra desistir depois de um mês tentando ligar.
_Não fica assim, amor._ falei acariciando sua orelha _Dado os fatos, você fez o melhor que pode.
_É! Falta maturidade pra essa menina._ completou Mariana.
_Não é assim também, né, gente._ intercedeu Alice _A mãe da menina está morrendo, a vida dela deve estar de cabeça pra baixo.
_Concordo, amor._ falou Pedro lhe dando um beijo na bochecha.
_Ai, desgruda, né, Pedro!_ ela respondeu o empurrando de leve.
Pedro fez cara de contrariado e se afastou dela. Nenhum de nós ligava mais para aquilo. Era cena rotineira: Pedro ficava carinhoso demais e Alice o afastava. Pedro era carente, gostava do máximo de contato possível, enquanto Alice preferia declarações de amor mais frias e distantes.
_Então, amor._ falou Rafa no meu ouvido me abraçando pela cintura _Você já aprendeu a dançar ou ainda precisa de algumas lições?
Eu ri me lembrando da vez que fomos a uma boate gay com Alice e Pedro. Parecia fazer uma eternidade, apesar de pouco mais de dois anos terem se passado.
_Eu que ensino agora!_ falei o encarando.
_Me mostra então!
_Estamos indo dançar._ anunciei.
_Vou também._ falou Alice.
E nós três fomos para o meio da pista de dança. Já tínhamos bebido um pouco, então nem ligávamos para coreografia nenhuma, apenas nos movimentávamos ao som da música. E ríamos, como os três bons bêbados que éramos. De vez em quando, eu pegava Alice e dançava com ela. Rafael também fazia isso. Depois dançávamos só os dois, bem colados, apesar da batida agitada.
Não liguei para os primeiros olhares de estranhamento que recebi. Achei que eram por conta da forma desengonçada com que dançávamos. Mas percebi que os olhares desaprovavam a minha proximidade com Rafael, o jeito com que dançávamos um com o outro. A minha ficha demorou um pouco a cair enquanto eu continuava dançando. Talvez fosse o álcool, ou talvez Paris me tivesse desacostumado daquela realidade. Estávamos machucando a visão deles!
_Preciso parar pra beber alguma coisa!_ meio que gritei no ouvido de Alice e Rafael para eles me escutarem em meio à música.
_Fraco!_ gritaram os dois em resposta e ficaram rindo de mim.
Fui abrindo caminho no meio da multidão, peguei uma bebida (não-alcoólica) e voltei para junto dos outros. Fiquei quieto ouvindo a conversa deles e bebendo. Alice e Rafael não demoraram a chegar.
_Você está bem?_ perguntou Rafael preocupado passando a mão no meu rosto.
_Sim. Só girou um pouquinho, aí achei melhor parar um pouco.
Eu não quis contar o que tinha percebido por medo de confusão. Por mais que eu não aceitasse mais abaixar a cabeça para os outros no que diz respeito à minha sexualidade, também não achava necessário fazer barraco na festa dos outros. Mas eu tinha medo que Alice e Rafael não tivessem o mesmo pensamento. Eu contaria para eles, mas depois da festa.
_Me dá um pouco?_ falou Alice pegando a bebida de Pedro sem esperar resposta.
Ele fechou a cara, mas não reclamou. Ela percebeu.
_Porra! Vou morrer envenenada com essa bebida. O olhar que você me deu...!
_Agora você lembrou de mim, né?_ ele respondeu ainda ofendido.
_Vê se cresce!
_Eu vou bater em vocês dois._ falei.
Os dois continuaram naquele clima ruim enquanto o resto de nós conversávamos. Como eu disse, nenhum de nós ligava mais, então não nos atrapalhou. Até porque, eu tinha problema maiores. A partir da hora da dança, passei a perceber que olhares de desaprovação não se limitaram à pista de dança, mas toda vez que Rafael se aproximava de mim. Não estávamos nem nos beijando! Ele apenas passava a mão na minha cintura ou no meu cabelo, ou bebia da minha bebida. Aquilo começou a me fazer um mal imenso, mas eu não podia falar que queria ir embora, pois todos desconfiariam.
Daniela, a aniversariante, chegou na nossa rodinha toda animada.
_Tudo certo por aqui, gente?
_Claro! A festa tá demais, Dani!_ falou Pedro.
Ela riu e trocou mais algumas palavras com a gente. Eu a convivia com ela a três anos, então eu entendi logo que ela não estava ali simplesmente jogando papo fora com a gente. Ela estava disfarçando. A verdadeira intenção dela não demorou a aparecer.
_Meninos, posso falar com vocês um minutinho?_ perguntou se dirigindo a mim e Rafael.
_Claro.
Falei a seguindo para um canto. Ninguém ali era burro, todo mundo percebeu que ela ia falar alguma coisa sobre mim e Rafael, mas não na frente de todos. Vi os músculos do pescoço de Alice se retraindo de raiva quando passei por ela.
_Então...?_ perguntei sem o mínimo de paciência para o que eu sabia que viria a seguir.
_Então..._ ela começou sem jeito.
Só o fato de Rafael ter permanecido calado durante todo esse tempo, já me dizia que ele percebeu o que estava acontecendo e aquilo o atingiu.
_Estamos incomodando, Dani?_ perguntei irritado com o sorriso falso que ela sustava.
_Não sou eu, meninos. Vocês sabem que eu acho vocês lindos, não sabem? Sou super cabeça aberta! Só que nem todo mundo é que nem eu, então estou com medo de alguém vir incomodar vocês. Eu estou pensando só em vocês mesmo.
As palavras dela me retorceram o estômago. Lógico que ela não estava do nosso lado coisa alguma. Não que alguma vez tenha se mostrado uma pessoa que eu gostaria de ter ao lado. Ela era tão falsa que, acredito eu, acreditava na figura que ela criou para si mesma. Se eu não estivesse tão puto, estaria com pena.
_O que você está pedindo, Daniela?_ perguntei cruzando os braços.
_Nada de mais, Bê._ (eu não tinha essa intimidade com ela) _É que vocês poderiam se separar um pouquinho, sabe? Não ficar se pegando, vocês entendem, né?
_Claro._ respondi com um sorriso cínico.
Peguei a mão de Rafael. Ele me olhou com um olhar que misturava tristeza pelas palavras de Daniela e confusão pelo meu gesto.
_Vamos embora? Esticar a noite em outro lugar?
Ele me sorriu.
_Claro, amor.
_Não é pra vocês irem embora, meninos!_ falou Daniela exasperada _Não tem necessidade disso. É só vocês se segurarem um pouco. Nunca pediria a vocês para irem embora, não sou esse tipo de pessoa.
_Não, você realmente não é esse tipo de pessoa, o tipo de pessoa que diz na nossa cara o que você realmente quer dizer. Por isso estamos indo embora, pra te poupar do trabalho de dizer.
Ela parou um segundo com o impacto das palavras. Ela não esperava uma atitude daquelas da minha parte. Talvez de Rafael, mas não de mim.
_Bernardo, eu...
_A festa está ótima, Dani._ a interrompi sustentando o mesmo sorriso falso que ela gostava de empunhar _Muitas felicidades! Obrigado pelo convite. Pena a gente já ter que ir. Tchauzinho!
Saí puxando Rafael pela mão até a nossos amigos para nos despedir.
_O que ela queria?_ perguntou Alice adivinhando tudo.
_No subtexto? Nos pediu pra ir embora.
_Filha da puta!_ gritou Alice com raiva.
_Tchau, gente!_ falei dando um tchau geral.
_Sério, Bernardo?_ perguntou Paulinho penalizado.
_Sério, cara. Não fico em lugares onde não me querem bem. Até mais, gente.
E fui embora puxando Rafael pela mão, pouco me importando com o que as pessoas achavam de ver dois homens de mãos dadas. Só fui olhar para Rafael quando estávamos na rua.
_Você está bem?_ perguntei parando de frente pra ele na rua.
_Já estive melhor..._ ele falou com um sorriso fraco.
_Se eu pudesse, Rafa..._ falei o abraçando.
Se eu pudesse o que? O que poderia fazer? Adiantaria alguma coisa gritar e mandar todo mundo naquela festa ir se fuder? Abandonar o faculdade? Jogar uma bomba lá? Talvez eu fugisse com Rafa. Bem isso, se pudesse, eu teria fugido com Rafa daquela realidade tão cruel.
_É uma péssima coisa pra se dizer, mas acho que estou me acostumando._ ele falou _Dói menos a cada vez.
_Não é vantagem se deixar de doer e passa a te ressentir.
_Fazer o que?
Voltamos a caminhar lado a lado. Se mãos separadas, lógico, poderíamos ferir a visão de mais alguém e este alguém querer resolver na base da agressão.
_Vamos pra minha casa?_ ele perguntou.
_Seus pais não vão se incomodar?
_Quanto mais você for lá, mais cedo eles vão se acostumar com você.
_Vamos, então._ respondi rindo.
_Ei!_ gritou alguém atrás da gente.
Olhamos para trás e nossos amigos vinham na nossa direção. Não só Alice, Pedro, Mariana, Bruno e Paulinho, mas mais uns 4 colegas.
_O que vocês estão fazendo aqui?_ eu perguntei surpreso.
_Se vai ser vocês ou eles, eu escolho vocês. _respondeu Mariana.
_Isso e o fato de a gente ter ficado com vergonha depois do barraco que a Alice arrumou com a Daniela._ falou Pedro.
_Alice!_ chamei sua atenção.
_Fiz e faço de novo!
_E pra onde a gente vai agora?_ perguntou Bruno.
_Tem um boteco ali na próxima esquina.
_Bora então!
E lá fomos nós pro tal boteco. Era um lugar bem caído, “copo sujo” mesmo, mas nos divertimos muito mais do que estávamos nos divertindo naquela festa. Era em frente a uma balada bem “alternativa”, então estava cheio de casais de gays e lésbicas. Logo, eu e Rafa tivemos liberdade para ficarmos juntos ali apreciando o momento com nossos amigos. O clima estava tão bom, que até Alice e Pedro fizeram as pazes e estavam que era puro amor na mesa. Num daqueles momentos em que todo mundo está falando e rindo ao mesmo tempo, com o dia quase amanhecendo, eu parei um minuto para observar meus amigos e agradecer por tê-los ali comigo.
Por melhor que fosse o clima, não pude deixar de pensar. Ali estávamos, escondidos num bar de fama duvidável numa esquina escura de Belo Horizonte. Foi impossível não pensar que eu, simplesmente por me atrever a amar outro homem, estava condenado a passar a minha vida relegado ao gueto.
Nada de muito relevante aconteceu durante o segundo semestre de 2008. Tudo continuou seguindo pelo mesmo caminho.
A mãe de Carolina, contra todos os prognósticos, estava se sustentando. O que não quer dizer que ela estava melhorando, apenas esticando por poucos meses sua expectativa de vida. Como resultado, Carolina realmente se afastou da faculdade, não indo nem mesmo nas festas, o que era compreensível. Só o seu usual grupinho tinha contato com ela. A consequência direta disso era a resistência de uma parte da nossa turma ao meu namoro com Rafael. Apesar de não andarmos de mãos dadas ou trocarmos beijos apaixonados na faculdade, não estávamos escondendo mais nada de ninguém. Mas as pessoas não estavam querendo ver dois homens namorando, feria seus olhos. Aliás, depois daquele dia que Rafael se declarou bêbado na festa de Pedro, nós dois nunca mais fomos tratados da mesma maneira pelos nossos colegas, para o bem e para o mal.
Em casa, as coisas estavam em suspenso. Thiago continuava próximo de mim, a caminho de virarmos grandes amigos. Laura ainda não tinha voltado ao seu estado normal, ainda que houvesse melhorado bastante desde então. A minha relação com Caio nunca mais voltou a ser o que era, mas talvez não fosse pra ser. Estávamos construindo uma nova relação. Ele já conversava civilizadamente comigo, mas nada muito íntimo. Ainda pisávamos em ovos um com o outro, mas já era alguma coisa. Meu pai continuava fazendo o meio de campo dentro de casa.
Minha mãe... Nada mudou na forma como ela me tratava. Ela tinha o mínimo de civilidade comigo, se dirigindo a mim somente quando se tratava de questões básicas. Eu mudei minha postura com ela, guardando as armas e abrindo a guarda, mas isso não fez o efeito desejado. Hoje eu sei que minha mudança de atitude levou ela a uma mudança mais sutil de pensamento, mas aquilo não se mostrou em mudanças de comportamentos naqueles primeiros meses após eu me assumir para ela.
Minha família aproveitou o feriado municipal do início de dezembro para visitar minha avó em Porto Alegre. Era justo, já que dado todo o ocorrido com tio Aurélio, é como se eles nem a tivessem visitado. Eu não pude ir porque tinha começado a estagiar numa cidade vizinha.
_Boa viagem._ falei para eles na porta de casa na sexta-feira à noite antes deles irem para o aeroporto.
_Nada de bagunça, seja responsável, ouviu?_ falou meu pai.
Era a primeira vez que eu ficava completamente sozinho em casa por três dias seguidos. Eu realmente não planejava “fazer bagunça”, mas lógico que a ocasião não ia passar em branco. Rafael ia dormir comigo durante o fim de semana. Não podíamos perder aquela oportunidade, uma vez que eram raras as ocasiões onde nós íamos dormir e acordar juntos. Mas minha família não sabia dessa parte, óbvio.
_Eu vou me comportar, pai._ falei num tom quase imperceptível de deboche.
_Bom mesmo.
Tiago falou no meu ouvido, me fazendo rir:
_Nada de aprontar com o Rafa, viu?
Ele se aproximou mais de mim e passou a mão no meu pescoço.
_O que foi?_ estranhei.
_Você tá quente. Tá com febre.
_Não deve ser nada. Peguei uma chuva ontem, já passa.
Minha mãe se materializou de algum lugar atrás de nós e colocou a mão na minha testa. Eu me assustei, mas ela pareceu ignorar. Era a primeira vez que ela tocava em mim desde que ela me deu aquele tapa na cara.
_Você tá com febre mesmo. E agora?_ perguntou mais pra ela mesma do que pra um de nós.
_Eu tô bem, só com um pouco de mal estar. Um antitérmico vai resolver.
Ela coçou a cabeça preocupada.
_Tá, toma. Mas quero você ligando pro seu pai se você sentir qualquer coisa diferente.
_Tá, mãe._ respondi sem jeito.
Ela saiu pra algum lugar qualquer do apartamento, deixando eu e Tiago sem palavras. Certo, pensando bem, foi um enorme passo, mas naquele momento gerou apenas estranheza.
_Devagar é que se vai longe!_ comentou meu irmão.
[...]
Quando abri a porta do apartamento duas horas depois da minha família ter partido, Rafael pulou em cima de mim antes mesmo de dizer alguma coisa. Ele envolveu minha cintura com suas pernas e me prendeu num beijo intenso. Mal conseguia raciocinar o bastante para fechar a porta atrás dele. Sem falarmos nada ou pararmos de nos beijar, eu fui levando ele até o meu quarto. O joguei na minha cama e o fiquei encarando.
_Que saudade do seu quarto, das suas coisas, do seu cheiro..._ ele falou se espreguiçando na cama.
Não respondi. Me aproximei dele e comecei a despi-lo. Primeiro, tirei seus tênis e suas meias, apertando com carinho os seus pés. Ele me ajudou a tirar a própria camisa e eu fiquei passando a mão sobre seu peito e seus braços. Ele apreciava os carinhos de olhos fechados e com um sorriso safado no rosto. Tirei sua bermuda e sua cueca de uma só vez, exibindo seu pau já duro me encarando.
_Rafa..._ falei lhe dando beijinhos no pescoço.
_O que?
_Podemos fazer sem hoje?
Ele entender bem a minha pergunta. Nunca tínhamos transado sem camisinha. Ele me respondeu com lindo sorriso. Eu tirei minha própria roupa, peguei o lubrificante e espalhei no seu pau. Era tão forte a sensação de estarmos compartilhamos nossos corpos ali, que não demorou mais do que alguns poucos minutos cavalgando em Rafa para que eu sentisse sua porra me preencher por dentro. Só aquela sensação foi o bastante para me fazer gozar muito e cair semi-desmaiado no peito do meu namorado.
_Eu te amo tanto, Rafa..._ murmurei antes de cair no sono.
[...]
_Amor? Amor, acorda._ ouvi a voz de Rafa me chamando.
Meu corpo estava péssimo, parecia que eu tinha sido atropelado por um caminhão.
_Você tá ardendo em febre, Bernardo._ ele falou preocupado.
_Eu tô bem._ menti _Só preciso de um banho.
Me levantei com alguma dificuldade e fui tomar banho, o que não ajudou tanto quanto eu achei que ajudaria. Quando voltei ao quarto, ele já tinha separado uma roupa pra mim.
_Vamos, vou te levar no médico.
_Não precisa, Rafa. Eu tô bem._ respondi manhoso.
_Não está, não. Eu vou te levar ao médico, não tem discussão.
E lá fomos nós ao médico. Não deu outra: garganta inflamada. Me mandaram de volta pra casa depois de um bem dolorosa injeção de Bezetacil. Rafael me acompanhou o tempo todo.
_Obrigado, Rafa. Eu vou ficar bem._ falei depois dele me colocar na cama.
_O que? Você está achando que eu vou te deixar sozinho aqui? De jeito nenhum! Vou preparar nosso almoço._ falou saindo do quarto.
Eu ia falar que não precisava, mas no fundo eu estava gostando de todo aquele cuidado.
Ele voltou com um prato de sopa.
_Eu não gosto de sopa, Rafa.
Ele riu.
_Deixa de ser chato, abre a boca.
Ele ficou me dando comida na boca, embora não houvesse muita necessidade daquilo. Nós dois estávamos nos divertindo com aquela situação, ele gostando de cuidar e eu gostando de ser cuidado. Foi um fim de semana muito romântico até certo ponto, apesar de não ser nada do que imaginávamos que seria.
[...]
_Acorda, Bernardo._ me chamou Rafa na segunda-feira de manhã.
_O que foi?
_Já são quase meio-dia. Você não vai para o estágio?
_Mas hoje é feriado!_ reclamei me escondendo embaixo da coberta.
_Em BH, mas você trabalha em Nova Lima.
_Mas eu tô doente.
_Tá nada, já melhorou.
_Mas o médico me deu um atestado pra três dias._ falei rindo.
_Ah, seu Bernardo!_ ele riu também.
Ele me abraçou e afundou o rosto entre meu pescoço e meu ombro.
_Você tá se sentindo mal ainda?_ perguntou.
_Não tô 100%, mas tô quase lá.
_Fui um bom enfermeiro então?
_Não poderia ter escolhido um melhor. Muito obrigado.
_Não fiz mais do que a minha obrigação.
_Sua obrigação?
_Na saúde e na doença...
_Mas nós nem nos casamos!
_Ainda!_ ele respondeu rindo.
_Um dia...
_Um dia...
Eu sorri nos imaginando casados um dia.
_E como você imagina o nosso futuro?_ perguntei.
_Ah, sei lá. Eu gostaria de formar família com você, ter uns quatro catarrentos correndo pela casa.
_Quatro?!
_Na sua família deu certo, não?
_É..._ respondi rindo.
_Mas primeiro eu quero rodar o mundo com você. Conhecer das maiores cidades às mais remotas ilhas. Aí, poderíamos escolher um lugar pra viver e fincar raízes.
_Você não quer ficar no Brasil?
Ele ficou um tempo em silêncio antes de responder.
_Não é ser anti-Brasil, mas pra gente é complicado. Nós nunca vamos ser respeitados, vistos como família.
_As coisas podem mudar...
_Não acho que veremos mudanças tão profundas ainda vivos...
_Você é um tanto quanto cético.
_Realista, meu amor.
Me virei e fiquei de frente para ele, admirando meu reflexo no fundo dos seus olhos.
_Você iria comigo?_ ele perguntou.
_Seria muito difícil deixar tudo pra trás, principalmente minha família. Mas, sim, eu te seguiria aonde quer que você fosse.
Ele sorriu e me deu um selinho.
_Agora que você está melhorzinho, a gente podia continuar nossos planos pro fim de semana._ falou com um voz mansa e passando a mão por dento da minha cueca.
_Eu adoraria, amor, mas minha família já deve estar chegando. Não podemos arriscar.
Ele deu um suspiro de conformação, riu, e se vestiu. O levei até a porta.
_Muito obrigado por ter cuidado pra mim._ falei lhe dando um beijo de despedida.
_Eu vou cuidar de você pelo resto da nossa vida.
[...]
Minha família chegou no meio da tarde e me encontrou embolado no meio das cobertas assistindo televisão na sala.
_Melhorou?_ perguntou meu pai colocando a mão na minha testa.
_Sim, fui no médico e tomei uma Bezetacil.
_O que?!_ gritou minha mãe mais uma vez se materializando ao meu lado.
_Calma, era só garganta inflamada.
_Eu não te mandei nos deixar informados!
_Mas não achei que tinha necessidade...
_Como não? Você passando mal aqui sozinho, indo pro hospital sozinho!
_Mas eu não estava sozinho!
No instante que falei, me arrependi. Não era para ele saberem, me entreguei num ato falho. Meu pai cruzou os braços e minha mãe recuou adotando a mesma posição distante dos últimos tempos. Não adiantava mais mentir.
_Rafael cuidou de mim._ era a primeira vez que eu falava dele para eles deixando claro o que éramos _Eu sei que não devia, mas é nada tão grave assim. Ele cuidou de mim, do mesmo jeito que eu cuidaria dele. Que tipo de pessoa ele seria se não o tivesse feito?
Ninguém me respondeu. Meu pai coçou a cabeça e minha mãe saiu sem fazer mais nenhum comentário. Suspirei e me deixei afundar no sofá. Naquele momento, eu interpretei aquilo como um grande recuo nos avanços que tive com minha mãe, mas não foi. Que mãe pode odiar alguém que se dispôs a cuidar do seu filho com tanto carinho sem pedir nada em troca? Dali a alguns anos, minha mãe me confessaria que foi naquele momento que ela passou a olhar Rafael com outros olhos.