_Canadá?_ repeti ainda tentando me localizar.
Rafael fez que sim com a cabeça. Seus olhos estavam vermelhos.
_Isso é bom... Significa que eles estão querendo apostar em você._ falei.
Lógico que não era aquilo que eu sentia. Era apenas um discurso genérico que eu daria para qualquer semi-desconhecido. Eu não queria meu namorado no Canadá! Eu só não sabia o que dizer.
_E por quanto tempo?_ perguntei.
_Dois anos._ ele respondeu baixinho.
_Dois anos..._ repeti tentando absorver a nova informação.
Dois anos longe de Rafael. Era possível? Nosso namoro sobreviveria?
_Poxa..._ falei me deitando na cama.
Fiquei encarando o meu teto pensando em como fazer aquilo funcionar. O que eu sentia? Parecia que tinham aberto um buraco no meu peito. Uma aflição sem tamanho tomou conta de mim.
_O que você acha?_ ele perguntou sem jeito.
_Eu acho que é uma grande oportunidade..._ respondi ainda meio confuso _Não é tipo de coisa que você pode jogar fora.
_O que você faria?
_Nós dois somos diferentes, Rafa...
_Você, como toda sua praticidade e seu realismo, o que faria?_ ele me perguntou sério.
Eu iria. Se eu tivesse o mesmo desejo de morar fora que Rafa tinha, e a oportunidade de realizar esse sonho, eu embarcaria nessa oportunidade. Não é uma questão de gostar de menos, obviamente que não. A vida é feito de escolhas, e a minha escolha nesse caso era ir pro Canadá. Da mesma forma que eu tomei a decisão de ir para Paris três anos antes.
_Eu acho que iria._ respondi.
_Fácil assim?
_Nunca é fácil assim.
_Você achar que a gente aguentaria?
_Eu acho que sim... Com que frequência você seria liberado para vir ao Brasil?
_Acho que no máximo duas ou três vezes por ano.
Passar seis meses sem meu namorado? Será que isso daria certo? Não falo nem mesmo pela questão da fidelidade, eu confio em mim mesmo e nele, mas eu temia o desgaste que a distância poderia provocar no nosso relacionamento. Por outro lado, se eu dissesse para ele “fique, por mim”, eu não poderia estar abrindo caminho para um desgaste muito maior? Sim, porque na primeira briga apareceria um “eu perdi aquela oportunidade por você”.
_A quanto tempo você sabe disso?_ perguntei e ele ficou em silêncio.
Não era à toa toda aquela história de querer sair de Belo Horizonte, e o medo que ele tinha de Ricardo “me roubar” dele. Eu tinha certeza de que aquela proposta de emprego já estava na mesa a algum tempo.
_Desde junho._ ele falou enfim.
Dei um longo suspiro. Rafael se sentou ao meu lado na cama.
_Me desculpa, Bê. Eu não sabia como te contar. Agora que você veio falando do Ricardo morar aqui, me bateu um medo verdadeiro de te perder.
Só uma coisa ainda não encaixava naquela história.
_Rafa, nenhuma empresa seguraria uma vaga dessa por três meses para um estagiário, por melhor que ele fosse._ falei.
Os olhos do meu namorado se encheram de lágrimas, o que só confirmou minha suspeita.
_Você já aceitou, né?
Ele apenas acenou com a cabeça confirmando. Era real, Rafael estava indo embora. Por dois anos! Eu esfreguei meus olhos com força, o que ele sabia que significava que eu não estava feliz.
_Desculpa, amor, mas é que meu chefe me pressionou para uma resposta. E é uma oportunidade imensa, como você mesmo falou.
_Eu não queria que você tivesse me pedido permissão, nunca faria isso com você._ falei _O que me magoa é você ter escondido por tanto tempo. Me comunicar no último minuto como se eu não fosse ninguém importante.
_Bernardo...
_E aquela história toda de morar junto? Era só para eu aceitar e então estar preso a você? Pra eu me sentir obrigado a ir com você aonde quer que você me arrastasse? Pra isso todo aquele papo de sair de BH?
Acredito que ele não tinha feito aquilo por maldade. Num ato de desespero, ele tentou abraçar as duas coisas, eu e o emprego. Mas mesmo assim eu senti raiva, me senti traído por ele. O que mais me magoava era achar que ele só me convidou para morar com ele por causa da proposta de emprego. Na minha cabeça, era como se ele só tivesse me pedido em casamento para eu me sentir obrigado a ir com ele para o Canadá.
Bernardo, me desculpa, eu não queria te magoar, eu..._ ele começou a falar chorando mas eu o interrompi.
_Eu preciso de um tempo para pensar, Rafa.
_Não, Bernardo, eu...
_Não estou terminando com você, nem estou pedindo um tempo no nosso namoro._ falei calmo _Apenas preciso de um tempo para pensar nisso tudo que está acontecendo.
_Mas...
_Por favor, Rafa.
Ele me lançou um olhar conformado e triste, me deu um beijo na bochecha e foi embora.
Rafael estava indo embora pro Canadá. E o que eu deveria fazer? Ir com ele? Esperar por ele? Terminar o namoro e nos deixar livres? Eu não tinha nenhum dúvida em relação ao amor que eu tinha por Rafael, do mesmo jeito que eu não duvidava como a distância dele me faria sofrer. Só que, era justo eu adiar meus sonhos em detrimento aos deles? Era justo eu colocar minha vida em stand by para que ele embarcasse nessa grande oportunidade? Qualquer decisão que eu tomasse, eu conseguiria seguir em frente com o peso das consequências?
Eu e Rafa estávamos num momento maravilhoso de paz e tranquilidade no nosso relacionamento. Por mais que a ideia ainda me assustasse um pouco, ir morar com ele era o próximo passo. Íamos nos casar. E o que é o casamento? Não é justamente estar lá pra apoiar o parceiro, muitas vezes adiando planos para que o outro siga seus sonhos? O significado de estar junto não é crescer junto? Por mais que eu vacilasse um pouco ainda, minha decisão já estava tomada: eu ia com Rafa, simplesmente porque me separar dele não era mais uma opção. Aquela era a vez dele e eu estaria lá para apoiar, assim como um dia seria a minha vez e ele me apoiaria.
Minha decisão já estava tomada, mas eu ainda estava magoado com ele pela forma como as coisas aconteceram. Por isso, não fui dos mais receptivos quando ele me ligou no dia seguinte:
_Eu pedi um tempo pra pensar, Rafa._ eu falei.
_Eu sei, eu sei. Mas eu realmente preciso te ver hoje.
_Eu não sei, Rafa, eu preciso terminar umas coisas aqui.
_Por favor, Bernardo. É importante.
Suspirei vencido e concordei que ele me buscasse no final da tarde daquele domingo.
_Para onde estamos indo?_ perguntei quando entrei no seu carro.
_Pra minha casa de campo.
_Ai, Rafa, é longe, tá ficando escuro, deixa pra outro dia.
_Não, Bernardo, eu juro que é importante.
Seus olhos estavam me implorando para aceitar, então não tive outro caminho. Começava a anoitecer quando entramos no condomínio.
_Vem._ ele falou me puxando pela mão.
Ele acendeu as luzes e eu me deparei com uma mesa perfeitamente arrumada, com velas, flores, e belas louças.
_O que é isso, Rafa?_ perguntei surpreso.
Ele tinha um largo sorriso no rosto. Ele não me respondeu. Rafael me conduziu até uma cadeira, e depois foi à cozinha, de onde voltou como uma garrafa de vinho.
_Como você vai dirigir de volta?
_Nós vamos dormir aqui.
_Mas eu tenho aula amanhã cedo.
_Nós acordamos mais cedo. Pare de se preocupar com detalhes.
Ele se sentou e nos serviu com o vinho.
_Então, pra quê toda pompa?_ perguntei.
_Pra eu fazer as coisas certas desta vez.
_Como assim?
Ele se virou e do chão, vi ele pegar uma sacolinha e dela uma caixinha preta. Quando ele abriu, eu vi duas alianças em tons misturados de dourado e prateado, com nossos nomes gravados na parte interior. Meus olhos se arregalaram e eu me calei com o susto. Ele pousou a caixinha aberta na mesa.
_Eu vou fazer certo desta vez, Bernardo._ ele falou
Rafael pegou na minha mão e olhou no fundo dos meus olhos antes de continuar. Em nenhum momento ele deixou de sorrir para mim.
_Eu quero que você vá para o Canadá comigo, mas não por ser mais confortável. Eu quero que você vá comigo porque eu não consigo mais me imaginar longe de você. Eu quero que você vá comigo para nós termos a oportunidade de começarmos nossa família num lugar onde ninguém vai nos olhar de lado. Eu quero que você vá comigo porque as coisas só farão sentido se você estiver comigo.
Ele fez uma pequena pausa enquanto acariciava minha mão.
_Eu não estou te pedindo em casamento porque eu quero te prender a mim, te obrigar a me seguir. Eu estou te pedindo em casamento porque eu quero passar o resto da minha vida com você, aqui ou no Canadá._ ele abriu ainda mais seu lindo sorriso _Bernardo, você quer se casar comigo?
Eu estava sem palavras. Eu já tinha aquela resposta pronta a muito tempo, era só dizer aquela simples palavrinha. Mas como o mesmo Rafael me acusou diversas vezes, eu não consigo me desprender dos detalhes.
_Nós somos jovens demais._ eu falei com a voz beirando o desespero _Não temos dinheiro. Você vai trabalhar lá, mas e eu? Sem contar que pro Canadá é preciso visto, não? Lá já aceita o casamento gay, falando nisso?
Rafael me conhecia muito bem para saber que eu ia dizer sim, apenas que era natural para mim ter um pé no realismo e apontar todos aqueles problemas. Não brigávamos mais por causa desse tipo de coisa.
_Sim, é preciso de visto no Canadá, mas você consegue fácil. Assim como emprego, eles são muito receptivos a engenheiros. Dinheiro a gente ganha, além do que com meu salário lá a gente já consegue se manter. E, sim, o casamento gay é aceito lá desde 2005._ ele falou.
Me lembrei da primeira vez que ele me pediu em namoro, quatro anos antes:
“_Eu sei dos seus medos, eu vejo nos seus olhos as suas dúvidas. Mas você precisa admitir para você mesmo uma coisa: você me ama, e você não quer viver sem mim. Você mesmo disso isso, mas tem relutância em acreditar. Me dê uma chance de te mostrar que podemos enfrentar o mundo juntos. Bernardo, você aceita ser meu namorado?
_Eu não sei quando vou conseguir ser seu namorado, Rafael, não sei nem mesmo se um dia vou conseguir. Não vou poder te dar as mãos em público, muito menos te beijar. Não vou poder te apresentar à minha família oficialmente. Não vou poder usar uma aliança, pois as pessoas perguntariam. Então, para quê tornar isso oficial?
_Pra eu ter certeza que você é meu.
_Eu sou seu. Sou só seu há muito tempo.
_Firmar namoro é isso. Garantir que o outro será só seu e de mais ninguém. Não tem nada a ver com exibir a relação ao resto do mundo. Então, Bernardo, vou perguntar de novo e dessa vez dê a resposta certa. Você aceita ser meu namorado?”
Acho que Rafael também se lembrou, pois ele sorriu e falou:
_ Então, Bernardo, vou perguntar de novo e dessa vez dê a resposta certa. Você aceita se casar comigo?
_Sim.
E pronto. A minha vida estava pra sempre atrelada a de Rafael. Mas, não esteve sempre?
Eu e Rafael decidimos não contar a ninguém sobre o casamento ou sobre o Canadá, ou mesmo sobre a possibilidade de morarmos juntos após a faculdade. Apenas Alice e Pedro sabiam sobre a parte de morar juntos, mas era toda a informação que tinham. Concordamos que era melhor cuidar dos detalhes primeiro, e só contar quando as coisas já estivessem mais ou menos acertadas.
Eu estava muito nervoso com tudo, o que dificultava bastante a tarefa de manter segredo. Meus pensamentos vagavam: ora era na vida de contos de fada que Rafael e eu levaríamos no Canadá, ora era todas as dificuldades possíveis que encontraríamos no caminho. A começar pela minha família. Eu sabia que todos seriam contra eu me mudar para o Canadá, ainda mais seguindo um namorado. Teoricamente, eu já estaria formado e seria independente deles, mas na prática que tinha um laço de dependência emocional muito forte com todos eles. Tentei seguir os conselhos de Rafael e deixar para me preocupar com essas coisas só na hora que fosse preciso me preocupar com essas coisas.
No fim de semana seguinte ao pedido de Rafael, Ricardo me ligou me convidando para a inauguração do apartamento dele em Belo Horizonte. Minha barriga formigou com a possibilidade de rever Ricardo, afinal lá se iam mais de dois anos desde o nosso último encontro, naquela fatídica festa de aniversário de Pedro.
Rafael, contudo, ainda não estava gostando nem um pouco daquela história.
Eu não quero que você vá._ ele falou com um tom manhoso.
_A gente já discutiu isso, Rafa. Seria uma falta de educação enorme com Ricardo.
_Mas ele é seu ex-namorado.
_E também é meu amigo.
_Mas, sei lá...
_Rafa..._ peguei sua mão e a segurei junto ao meu peito _Em menos de seis meses a gente vai se casar e sair do país, do que mais você está com medo? E mesmo se não fosse o caso, eu estou só com você.
_Eu tenho medo de você redescobrir algum sentimento por ele quando revê-lo.
_Isso não vai acontecer, Rafa.
Não ia acontecer porque eu ainda amava Ricardo, eu não precisa redescobrir nada. Só que eu amava Rafael mais, simples assim. Mas eu não ia explicar isso ao meu noivo. O tiro sairia pela culatra e terminaríamos numa briga de verdade.
[...]
Minhas pernas mal paravam quietas enquanto eu subia no elevador do novo prédio de Ricardo. Era pura ansiedade. Quando eu toquei a campainha, foi ele mesmo que abriu. Eu vi fotos dele nos últimos anos, mas ao vivo é sempre diferente. Seus cabelos estavam curtos e perfeitamente arrumados num topete, diferente de quando eu o conheci, quando eles costumavam ser desarrumados e descer até seus ombros. Ele sempre deixava a barba por fazer, mas agora ela a usava perfeitamente alinhada com a pele, quase inexistente. No mais, ele estava igual a como eu me lembrava dele: alto, magro, brilhantes olhos cinzas e aquelas pequenas rugas provocadas pelo seu sorriso.
_Oi._ ele falou ainda à porta.
_Oi._ respondi.
Não estávamos conversando monossilabicamente por estranheza, mas por pura diversão. Aliás, compartilhamos tanta coisa durante o ano que ficamos juntos, que não tinha mais como voltarmos a ser apenas dois estranhos. Éramos parte um do outro. Para sempre.
_Bem-vindo a Belo Horizonte!_ falei levantando uma cesta de pães de queijo que tinha lhe trazido
Ele riu gostosamente ao ver a cesta e me puxou para um abraço. O perfume dele ainda era o mesmo, o que só me trouxe mais e mais doces lembranças. Talvez fosse a sua intenção, talvez fosse só a paranoia de Rafael me contaminando.
_Que saudade de você!_ ele falou me dando um beijo na bochecha.
_Saudade de você também. _ respondi entrando no apartamento.
_Mas isso acaba agora que nós seremos vizinhos.
_É...
Não tive coragem de lhe dizer que seríamos vizinhos por apenas mais alguns poucos meses. O apartamento era grande, mas ainda tinha apenas os móveis básicos. Ele me apresentou aos seus dois colegas de apartamento e depois me guiou até a varanda para podermos conversar em paz.
_Não posso te levar pro meu quarto._ ele falou brincando _Seu namorado pode não gostar.
Ri sem confirmar ou negar. Ricardo não sabia o nível do ciúme que Rafael sentia por ele, apesar de saber que existia. Não que conversássemos muito sobre o assunto, é que na época que morávamos juntos, nós tivemos longas conversas sobre a personalidade de Rafael, de modo que Ricardo a ficou conhecendo bem. Aliás, por mais que eu ainda considerasse Ricardo um amigo, era uma amizade estranha, distante. Conversávamos de vez em quando pela internet, no máximo duas ou três vezes ao mês. Ele me fazia perguntas genéricas sobre Rafael e eu dava respostas ainda mais genéricas. Por mais que nunca mais Ricardo tivesse se declarado para mim novamente após aquela ligação, eu achava que ele ainda tivesse sentimentos fortes por mim. Deste modo, eu evitava falar muito do meu namoro com medo de magoá-lo de algum modo. Talvez ele também tivesse esse mesmo tipo de receio, pois raramente falávamos do seu namorado.
_Falando em namorados, cadê o seu?_ perguntei
Ricardo deu um meio sorriso e fez com os ombros que não sabia.
_Em São Paulo, acho.
_As coisas não andam bem?
_As coisas não andam mais. Nós terminamos.
_Sinto muito.
Sei que é um sentimento egoísta, mas devo admitir que não sentia não. Ricardo merecia seguir em frente, achar alguém que pudesse ser dele por completo, que direito eu tinha de torcer contra? Eu estava com Rafael, por que ele não podia estar com alguém também? No fundo, acho que é por isso que nós nunca reconquistamos aquele nível de amizade que tínhamos em Paris, mesmo antes do namoro: os resquícios de ciúme não permitiam que um quisesse bem os novos amores do outro. Nenhuma amizade vai pra frente se um amigo não está torcendo pela felicidade plena do outro.
_Não estava dando certo com o Talles._ ele falou _Acho que nós começamos a cansar um do outro, sabe? Aí nós terminamos a faculdade e caímos de cabeça em rotinas de trabalho super pesadas, o que também não ajudou. No fim, mal nos víamos e mal tínhamos vontade de nos ver. Mas terminamos bem, sem brigas.
_Sinto muito._ repeti _Ele parecia ser um bom rapaz.
_E era sim, um cara maravilhoso. Pena que você não o conheceu.
_Sozinho você não fica. Modéstia a parte, os caras daqui são lindos._ falei brincando.
_Eu sei!_ ele respondeu rindo _Aliás, tem algum amigo pra me apresentar?
_Nenhum à sua altura.
_Assim fica difícil.
Não havia ninguém à altura de Ricardo. Acho que nem eu mesmo estava à altura de Ricardo. Ele era simplesmente bom demais para ser real.
_Mas se você quiser se divertir,_ falei _eu posso te levar em festas por aí. Te apresentar à noite gay de Belo Horizonte.
Eu nunca fui uma pessoa muito afeita a boates. Música alta e gente relando de mim estava mais pra minha definição de inferno, do que de diversão. Contudo, nesses dois anos de namoro com Rafael, eu acabei conhecendo mais a fundo a noite gay. Isso era natural de acontecer, pois muitas vezes queríamos dançar juntos ou namorar em público sem medo de alguém nos machucar. As boates e bares gays acabaram sendo nosso reduto, embora também frequentássemos ambientes héteros de vez em quando. No fim, apenas por estar num relacionamento gay, você já se colocava num gueto, por mais que você não gostasse desse gueto. Era inevitáveL.
Era interessante também a quantidade de gays que conhecemos a partir do momento que a gente se assume. Não que tenha ocorrido uma saída do armário em massa depois que eu e Rafa assumimos nosso namoro, acho apenas que passamos a prestar mais atenção neles e eles em nós. Além disso, eu notei que a cada ano entrava mais calouros claramente gays. Não estou falando nem de afetação, e sim de gente sem paciência para sustentar um personagem por cinco anos, como eu sempre pretendia ter feito. Eu queria ter tido aquela coragem desde sempre.
Todos as novas pessoas que nos conheciam e descobriam que nós namorávamos, tinha quatro reações possíveis: primeiro, as pessoas que não gostavam e davam um jeito de sair de perto rápido; segundo, as pessoas que ficavam surpresas, fingiam levar a situação de boa, mas viravam a cara na primeira oportunidade; terceiro, as pessoas que aceitavam, perdi a conta de quanta menina bêbada em festa de faculdade que nos abraçava e gritava “você são lindos!”; e quarto, pessoas que achavam que era festa e já davam em cima. Aconteceu alguma vezes, mais com meninos do que com meninas. Paqueravam na cara dura, às vezes com nós dois juntos. Eu não sei se as pessoas ainda achavam que relacionamento gay não combinava com monogamia, ou só queriam aproveitar a oportunidade de agarrar um de nós sem o outro ver. Rafael tinha pouca paciência pra esse tipo de coisa, ainda mais depois da nossa fatídica experiência com sexo a três no carnaval de Ouro Preto. Eu simplesmente dava um sorriso amarelo e saía de perto.
Esse era exatamente o tipo de coisa que eu conversei com Ricardo durante esse tempo de comunicação virtual. Nada muito específico sobre nossas vidas amorosas, mas nada genérico demais, como “tá chovendo aí em São Paulo?”.
_Eu vou gostar sim._ Ricardo respondeu _Afinal, só tenho três amigos aqui: você, Alice e Pedro.
_E de quem mais você precisa?_ falei brincando.
Ele riu, olhou de relance para dentro do apartamento para ver se alguém nos escutava e falou mais baixo:
_E os caras são só conhecidos meus, não amigos._ falou quase cochichando _Vim morar com eles porque a empresa bancou os primeiros três meses de aluguel. Mas quero achar um lugarzinho só meu, sabe, dar minha cara ao apartamento.
_Então não é só temporada? Você veio pra ficar?
_Mal cheguei e você já quer que eu vá embora?_ ele devolveu rindo.
_Lógico que não!_ respondi rindo também.
_Não, não é uma temporada. Eu estou realmente me fixando em Belo Horizonte. Tenho muito espaço para crescer dentro da minha empresa aqui.
Não pude pensar como aquele se mostrava mais um desencontro da minha vida: Ricardo se mudando para Belo Horizonte, e eu me mudando de Belo Horizonte.
_Então, podemos marcar pro próximo fim de semana?_ ele perguntou.
_Claro, vou falar com o Rafa._ respondi automaticamente.
Uma sombra passou pelos olhos de Ricardo, e ele logo tentou disfarçar com um meio sorriso. Me arrependi no mesmo momento. Era óbvio que Ricardo ainda sentia algo por mim, embora eu não soubesse mais se com a mesma intensidade do passado. E, no final das contas, foi Rafael que tirou isso dele. Por mais que Ricardo e Rafael nunca tenham chegado a lutar de fato pelo coração da donzela que vos fala, eles sempre puseram um ao outro na posição de antagonista.
_Vai ser ótimo revê-lo._ emendou Ricardo rapidamente para tentar disfarçar o clima estranho.
Onde eu estava com a cabeça na hora que dispus a colocar Rafael e Ricardo no mesmo ambiente? Toda a merda da última vez não me ensinou nada? Mas agora o convite estava feito. E eu nunca poderia sequer sugerir a Rafael que eu ia a uma boate gay sozinho com Ricardo.
Meu celular vibrou com uma mensagem de Alice:
“Você pode vir aqui em casa? É sério.”
Esse tipo de mensagem dela sempre me deixava aflito, porque ela sempre se recusava a revelar os motivos do pedido de ajuda por mensagem, apenas pessoalmente. Quase sempre era só mais uma briga com Pedro, mas mesmo assim me deixava preocupado com a dúvida.
_Ricardo, tenho que ir na Alice._ falei _Mas nós vamos sim.
_Ótimo! Eu te ligo, pode ser?
_Claro. Não vamos mais perder contatos.
_Ainda mais agora que seremos vizinhos.
Eu ri.
“Só por seis meses, Ricardo...” pensei.
[...]
_Oi, Bernardo._ falou a mãe de Alice quando abriu a porta para mim _A Alice está passando um pouco de mal, acho que é garganta inflamada. Mas se você quiser, pode ir lá.
_Obrigado, vou sim.
Eu já era de casa, ninguém mais me acompanhava ao quarto de Alice, ou mesmo achava estranho ficarmos lá com a porta fechada, embora ela tivesse namorado. Entrei no quarto e a encontrei toda encolhida na cama, de costas para a porta.
_Alice?_ chamei _Você está passando mal?
_Não._ ela falou com a voz fraca e se virou para mim.
Sua aparência estava péssima, com olhos fundos e a pele muito pálida. A primeira vista, poderia parecer que ela estava doente, mas eu a conhecia bem o bastante para saber que não era a questão.
_O que aconteceu, Alice?_ perguntei preocupado me sentando junto a ela.
Ah, a vida, como ela é cheia de surpresas... Quando eu me imaginaria casando com outro homem e me mudando para fora do país? Quando eu me imaginaria frequentando boates gay? Quando eu me imaginaria sofrendo com o dilema de tentar conciliar o ciúme do meu noivo e minha amizade com um ex-namorado? Lembram-se de todos aqueles planos que eu tinha de me casar com uma mulher, ter meus filhos e levar uma vida tranquila? Cadê esses planos agora? Para onde a vida me levou? E essa é uma lição que eu aprendi depois de muito bater a cabeça por aí: não faça planos demais, você vai se frustrar com a vida destruindo cada um deles. Vejam Alice, por exemplo, vocês acham que ela planejou se apaixonar por um cara como Pedro? Nunca! Alice sempre esteve destinada a brilhar sozinha, a ser uma daquelas mulheres autossuficientes e realizadas. Alice nasceu para governar o mundo. Aí veio a vida. Com uma simples frase, Alice mudou a vida de todos que a cercavam, inclusive a minha, para sempre e de modo irreversível.
Com a uma voz chorosa e as lágrimas surgindo em seus olhos, ela me contou o que a afligia daquela maneira como se fosse a pior notícia do mundo:
_Eu estou grávida.