Bernardo [93] ~ BY Pedro

Meu nome é Pedro Souza Junqueira, um belo-horizontino nascido no dia 30 de julho de 1987. Sou o caçula de três irmãos, numa família onde os homens são a maioria absoluta. O conceito de “o que é ser homem” me foi apresentado muito cedo, como numa tradição que passa de pai para filho. Só que o conceito era o mesmo desde que bisavô começara a repassá-lo. Basicamente, era: seja o provedor principal do seu lar, não se esqueça que você é o sexo forte, seja forte (física e emocionalmente), e criei seus filhos assim.

Pra mim foi um grande problema porque, como minha mãe sempre gostava de dizer, eu tinha “alma de artista”. O que ela quis dizer era que eu era sensível. Hoje eu consigo admitir que sou mesmo, mas não foi sempre assim. Meu pai e meus irmãos se zangavam comigo quando eu era menor por eu chorar demais, ou gostar de comédias românticas, ou por preferir brincadeiras menos brutas. Meu pai me batia, mas era num nível que se aceita para educar um filho, não era um espancamento. E ele nunca me bateu por ser sensível demais, mas por travessuras ou pisadas na bola que eu dava nos estudos principalmente. Só que ele ficava igualmente despontado comigo nos dois casos, então eu passei a associar as duas coisas muito fortemente. Afinal, o olhar de desapontamento do meu pai sempre me doeu muito mais do que qualquer tapa que ele tenha me dado.

Assim, eu aprendi a colocar uma máscara. Eu aprendi que a me fazer de forte, segurar o choro, bancar o macho-alfa, etc. Interpretei por tanto tempo aquele personagem, que acabei internalizando ele. Eu virei aquele garoto que meu pai gostaria que eu fosse, feito a imagem e semelhança dos meus irmãos.

Mais dois minutos e você teria nascido gay!_ me falou Bernardo quando eu lhe contei tudo isso pela primeira vez.

Lógico que é uma piada, hoje eu tenho a perfeita noção do que o que faz um homem gay é simplesmente ele ter tesão por outro homem, e nada mais. Um conceito extremamente simples que às vezes esquecemos... Enfim, guardada as devidas proporções sobre a piada de Bernardo, eu logo entendi a conexão que criamos tão rapidamente: nós nos víamos um nos olhos do outro, éramos os dois lados da mesma dor. Ambos tivemos que colocar máscaras para disfarçar as nossas verdadeiras personalidades, pois tínhamos medo de como as pessoas olhariam para nós. Essa conclusão não veio fácil, e nem mesmo Bernardo conseguiu desvendá-la rapidamente. Quando nos conhecemos, assumimos que aquilo era só o sentimento de uma forte amizade e nada mais. Mas era mais: identificação e solidariedade.

Eu só fui descobrir isso depois que Bernardo contou que era gay. A primeira reação foi o susto, claro. O que meu pai pensaria de mim se soubesse que eu andei pra cima e pra baixo com um cara gay por meses a fio?

E tinha a traição, óbvio. Mais do que o fato dele ter escondido, e eu entendo seus motivos de ter escondido de mim, foi o fato de ele jogar na minha cara que nossa amizade foi falsa, construído sobre frágeis pilares. Bernardo sabe ser cruel quando quer, ele usa as palavras exatas que ele sabe que machucarão o outro. Foi o que ele fez comigo. Foram meses fazendo mal um ao outro daquele jeito, nos ofendendo toda vez que nos encontrávamos na faculdade.

Assim, além da surpresa e da raiva, eu me sentia perdido por constatar aquela conexão entre nós. Eu fiquei com medo de ser como o Bernardo. Não gay, pois eu sentia tesão por mulheres e tinha certeza tesão. Digo no sentido de estar enganando todas à minha volta representando um personagem durante todo o tempo. E naquela tarde no lago, eu tomei o maiores dos sustos: ele quase se matou por não conseguir mais sustentar sua máscara, e se eu chegar lá também um dia? Hoje eu sei que nunca nem passaria perto disso, mas naquela tarde eu tive muito medo. Alice fala que foi a partir daquele momento que ela passou a me ver com bons olhos e eu acredito, porque foi a partir daquele momento que passei a deixar os outros a me verem sem minhas máscara.

Ai, Alice...

Com Alice foi amor à primeira vista, embora ela negue. Ela diz que eu não notei ela quando prestamos vestibular na mesma sala, o que é verdade. Eu não notei ela, porque se tivesse notado eu já estaria apaixonado por ela ali mesmo. Eu me apaixonei por ela na primeira vez que a vi mesmo, no nosso primeiro dia de aula.

Engraçado, eu não senti ciúme dela e de Bernardo nos primeiros dias, quando os dois ficaram muito próximos. Acho que, mesmo que inconscientemente, eu sabia que o que havia entre eles não era nenhum amor romântico, mas fraterno. Eu tive sim ciúme da cumplicidade entre eles, como se pudessem confiar mais um no outro no que em mim. Aliás, acho que ainda tenho esse ciúme.

Minha relação com Alice sempre foi turbulenta e difícil, o que não mudou quando começamos a namorar. Eu via no fundo dos seus olhos que ela gostava dos meus gestos mais românticos, mas insistia que não e me afastava. Se eu não a amasse tanto, eu teria terminado. Namorá-la exigia um esforço constante para achar o equilíbrio perfeito para questões como independência um do outro ou carinhos em público. Ela não gostava que a segurasse em público porque achava que eu estava exercendo sobre ela algum tipo de posse. E estava mesmo, só que não no jeito que ela achava. Ela era minha porque nós nos amávamos e estávamos juntos, não tinha nada a ver com o fato de eu ser o homem e ela a mulher.

Muitas vezes eu me pegava pensando: “era pra ser tão difícil assim?”.

Não que tenha sido péssimo, de jeito nenhum. Quando estávamos bem, meu mundo tornava-se maravilhoso. Mas, sei lá, um terço do tempo estávamos brigando por algum motivo besta. Motivos bestas esses que só escondiam o motivo principal: Alice tinha receio dos homens. Ela tinha medo de se entregar demais no relacionamento, de se tornar dependente demais de mim, de se ligar verdadeiramente de corpo e alma a um homem.

Esse foi o motivo das nossas muitas brigas e seria o motivo do término do nosso namoro.

Naquela tarde quando ela chegou à minha casa acompanhada de Bernardo, eu sabia que alguma coisa estava errada. Não que alguma coisa neles denunciasse isso muito claramente, eu apenas sabia. E, realmente, a notícia que eles me deram mudou minha vida para sempre.

_Grávida?_ repeti bobo.

Eu não conseguia nem raciocinar direito. Parecia alguma coisa absurda e abstrata demais para mim. Sim, eu sempre sonhei em ser pai, mas não era daquele jeito. Não era com 23 anos de idade. Não era ainda solteiro. Não enquanto eu ainda era só um estagiário.

_É, Pedro._ respondeu Alice sem emoção.

Minha mente viajava ora por doces imagens minhas carregando um bebê, ora por todos os problemas que vinha relacionados a ele.

_Mas como aconteceu? Você não estava tomando a pílula?!_ perguntei com uma nota de desespero na voz.

_Às vezes falha, nenhum método é 100% confiável. Nós fomos agraciados com o 0,001%.

Bernardo observava tudo calado. Ele não aguentou aquele clima ruim durante muito tempo. Ele nos conhecia muito bem para saber que vinha uma briga feia ali, e ele não queria assistir. Ele logo foi embora nos pedindo cabeça no lugar e sangue frio para discutir o assunto.

_Isso é loucura!_ falei caindo sentado na cadeira _Nós somos muito jovens! Eu não tô pronto pra isso.

_Ninguém nunca tá._ ela respondeu com uma voz sem emoção se sentando na minha cama.

_De quantos meses?

_Seis semanas.

Estávamos em setembro, o que significava que meu filho nasceria por volta de abril ou maio. Alice parecia calma, decidida, como se tivesse todas as respostas.

_E como vai ser?_ perguntei.

_Não sei..._ respondeu encarando meu teto.

_Nós vamos nos casar?

Eu sempre me imaginei casado com Alice. Certo, eu fui cafajeste com um monte de meninas por aí, já me diverti muito, mas eu falo sério ao me definir como um romântico. Alice nunca foi uma aventura para mim, um relacionamento com data de validade. Quando eu olhava para Alice, eu via a mulher com quem eu queria passar o resto da minha vida. Por outro lado, não era daquele jeito que eu imaginava pedir sua mão em casamento.

_Lógico que não!_ ela disse dando uma gargalhada irônica.

Sua reação me doeu. Por mais que aquela não fosse a melhor forma de fazer aquela pergunta, um “lógico que não” sempre dói. Era esse tipo de atitude que sempre deixava nosso relacionamento na corda bamba. Às vezes a atuação dela era tão boa que nem parecia atuação. Parecia que ela realmente não levava a mínima fé no nosso namoro, que eu era só um passatempo.

_Por que não?

_Eu não quero me casar com você, Pedro.

A frase dela podia tanto significar “eu não quero casar com você por causa de um bebê” ou “eu não quero me casar com você nunca”. Era esse tipo de ambiguidade que me torturava. Antes que eu pudesse responder, ela continuou.

_A gente não precisa ter as respostas todas agora. Temos alguns meses para pensar em como vamos fazer isso funcionar.

Tentei apelar pro seu bom senso.

_Alice, já vai nascer num lar separado? A gente se ama! Vamos criar ela juntos.

_Ah, Pedro, não estou pondo nenhum limite para você, eu só não acho que a gente deva se precipitar.

_Não é precipitação Alice, esse bebê já está aí! Nossa vida mudou pra sempre, agora é fazer a adaptação.

Ela ficou irritadiça de repente.

_Não precisa mudar se você quiser, Pedro. Pode continuar levando sua vidinha numa boa. Eu crio sozinha, não tenho o menor problema com isso. Ou tiro, sei lá.

Eu me irritei de verdade naquela hora. Eu não acreditava que ela estava falando seriamente em matar meu filho.

_Você enlouqueceu?! É lógico que eu vou cria-lo, você não vai tirar!_ gritei com raiva.

Eu nunca tinha gritado ou sido agressivo com ela, era a primeira vez. Mas ela não me olhou surpresa, me olhou magoada.

_Quer cria-lo?_ ela falou se levantando me encarando de frente _Tudo bem, a gente cria junto. Mas cada um no seu canto. Não vamos ser esse casal de propaganda de margarina.

Assim, tão de repente... Alice não queria mais. Alice não me queria, e me doeu mais forte do que qualquer coisa a dúvida se ela um dia quis.

_O que?_ perguntei tonto _Você está terminando comigo?

Sem que eu percebesse, as lágrimas começaram a escorrer livremente pelo meu rosto. Ela não se comoveu, pelo contrário, ironizou.

_Vai chorar agora? Acha que adianta alguma coisa?

_Para de zombar de mim!_ gritei.

_Você é patético, Pedro. E é por isso que estamos terminando. Eu vim aqui apenas lhe informar, dizer que a gente acertava os detalhes com cuidado, mas você já veio logo com casamento, como se fosse a solução mágica para a situação. Ter um filho não é brincar de casinha!_ ela falou com os olhos vermelhos _Tem horas que esses seus delírios são fofos, mas em momentos como esses, eles são apenas patéticos.

Eu chorei ainda mais forte, deixei que as lágrimas caíssem sem nenhuma vergonha delas. Eu não sei o que me doía mais, as palavras de Alice ou a percepção que ela estava intencionalmente tentando me machucar. Acho que ali Alice se quebrou para mim. Sempre esperei com paciência que ela abaixasse sua defesa e se entregasse ao nosso amor, mas foi uma espera em vão. Nunca ia acontecer porque ela não me amava do jeito que eu a amava. Ela talvez amasse o jeito como eu a amava, mas isso é muito diferente de me amar. E eu posso ser sensível, sentimental, romântico, o que seja, mas uma coisa que eu não sou é burro. Eu não ia ficar dando murro em ponta de faca. Eu me recusava a amar alguém que não me amava.

_Você que é patética._ falei tentando segurar as lágrimas.

Ela me olhou curiosa com a resposta.

_Você, Alice, você é que é patética. E você sempre acusou tanto o Bernardo disso, mas nunca olhou pra si mesma._ falei com raiva _Você é uma puta de uma medrosa e só isso. Essa força toda que você finge ter é só essa máscara patética que você resolveu usar porque um panaca te magoou a séculos atrás.

Ali ela começou a chorar. E, de repente, eu me vi contente por feri-la tanto quanto ela estava me ferindo.

_Você tem medo de mim, Alice, tem medo de se entregar. No fundo é só isso, por isso a rejeição à ideia do casamento. Tudo o que eu sugeri é dar um lar completo para o nosso filho, mas você não consegue ver isso, né? Tudo o que essa sua mente distorcida consegue enxergar sou eu te pretendo numa imensa armadilha para o resto da nossa vida. Não existe porra nenhuma de armadilha, Alice! Se for, eu estou tão preso nela quanto você

Apontei o dedo pra ela enquanto sentia na boca o doce amargo sabor de feri-la daquela maneira, de usar sua principal arma contra ela mesma.

_Você nunca vai ser feliz, Alice, porque você simplesmente não consegue correr riscos, e amar é um grande risco. Você nunca vai conseguir amar ninguém. E eu me recuso a viver com uma pessoa assim. Agora, sou eu que estou terminando com você.

Ela não fazia nenhum barulho, apenas deixava suas lágrimas caírem. Ela, em vão, tentava manter um olhar firme no rosto, como se recusasse a admitir derrota. Antes que eu mesmo caísse em lágrimas na sua frente, fui para o banheiro com a desculpa de tomar banho. Quando eu saí, ela já tinha ido embora. Então, eu me deitei na cama e me permiti chorar toda aquela terrível dor que eu estava sentindo, como se meu coração tivesse sido arrancado sem nenhuma sombra de piedade.

Minha mãe chegou e ficou preocupado ao me encontrar naquele estado.

_O que aconteceu, Pedrinho?

_Eu e a Alice terminamos._ falei entre lágrimas.

Ela ficou lá me consolando, embora eu me recusasse a dar mais detalhes. Eu não estava pronto para contar da gravidez ainda. Minha mãe contou ao meu pai sobre o motivo do meu estado.

_Sinto muito, meu filho._ ele falou ao lado da minha cama _Tenho certeza que você vai encontrar alguém melhor. E lembre-se sempre: homem não chora.

Ele deu um tapinha no meu ombro e saiu do quarto. Eu não o respondi. Naquele momento, eu jurei para mim mesmo quebrar aquela corrente ridícula. Eu ensinaria ao meu filho que homem chora sim.


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Ficha do conto

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Nome do conto:
Bernardo [93] ~ BY Pedro

Codigo do conto:
217984

Categoria:
Gays

Data da Publicação:
14/08/2024

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