Bernardo [97/98] ~ Reta Final

Tão logo Alice foi embora da minha casa naquele sábado de manhã, me coloquei a refletir sobre a situação em que eu me encontrava. Alice estava certa ao pontuar meu problema: minha dúvida era em ir pro Canadá ou não. Ricardo representava para mim um motivo para ficar. Não que eu subestimasse meu amor por ele, de jeito nenhum. No fim, todos os caminhos voltavam para Rafael. O tamanho do meu amor por ele era a resposta para tudo.

_Alô?

_Oi, Rafa, sou eu._ falei atendendo seu telefonema.

_Tudo bem com você?

_Tudo, e com você?

_Bem também, apesar de um pouco carente.

Eu ri da sua manha. Depois do beijo de Ricardo, quase toda a mágoa que eu senti por Rafa tinha passado. Minha culpa era tanta que superava qualquer outra coisa.

_O que nós vamos fazer hoje?_ perguntei.

_Bom, meus pais foram passar o fim de semana na nossa casa de campo. Não tá afim de vir pra cá dormir comigo?_ perguntou todo doce.

_Claro, seria ótimo.

_Vem agora?_ pediu.

_Acho que não vai ser possível._ respondi rindo _Não acredito que minha mãe vá me deixar passar pela porta sem uma conversa séria.

_Por que? O que foi que aconteceu?

_Ontem chegou a carta com o meu visto aprovado e ela abriu.

_Nossa! E como foi?

_Nada bom. A família toda estava reunida me esperando chegar.

_E o que aconteceu?

_Tentei explicar meus motivos, mas eu tinha tido um dia turbulento e não estava em condição de dar as melhores explicações. Pedi pra deixar a conversa pra hoje. Não acho que vou escapar.

_Quer que eu vou para aí te ajudar?

_Melhor não. Acho até que poderia ser pior.

_Por que?

_Porque eles acham que eu só estou indo pra te seguir.

_Não é verdade!

_É um pouco verdade, Rafa..._ falei cuidadoso.

_Mas..._ ele pensou por um tempo _A gente não quer se separar.

_Eu sei, e tentei explicar isso. Mas falar que estou indo porque amo meu namorado e vou seguir ele aonde quer que ele for soou muito adolescente apaixonado, o que não ajudou em nada. Por isso pedi pra deixar a conversa pra hoje.

_Vocês acham que eles vão ser contra?

_Contra eles são, mas não acho que eles me proibiriam de ir.

_Bom, me conta depois no que deu, certo?

_Certo. Beijo, até à noite.

_Até! Beijo.

Era o tipo de conversa que me deixava em dúvida. Não que o diálogo por si só tivesse alguma coisa de relevante, mas o tom com que Rafael falava comigo. Por mais que às vezes tivesse seus ataques, Rafael era um menino super doce e me amava. Ele expressava preocupação com meu bem estar em cada sílaba, em cada suspiro, em cada silêncio. Eu tinha medo de não ir e perder isso.

E não tinha mais como fugir, naquela noite eu contaria pra Rafael sobre o beijo. Esconder dele nunca foi uma opção, pois eu sei que nunca conseguiria. Eu sabia o quanto essa informação o machucaria, e eu sofria por antecedência por causa disso.

Aquele seria um longo dia. Eu não tinha nem me levantado da cama ainda quando meu telefone voltou a tocar. Meu coração se acelerou quando li o nome de Ricardo no visor.

_Oi. Te acordei?_ ele perguntou.

_Não. A Alice acabou de sair daqui, ela já tinha me acordado.

_Melhor assim._ ele riu _Como você está?

_Bem.

Eu estava constrangido de conversar com ele, uma coisa que nunca me aconteceu antes. Eu não sabia como conversar com ele sobre o beijo do dia anterior.

_Eu não me arrependo._ ele falou.

_Ricardo...

_Eu não me arrependo de ter te beijado.

_Não devia ter acontecido. Eu realmente amo Rafael, foi um momento de fraqueza.

_Não duvido que você ama ele, mas você me ama também._ seu tom de voz denunciava um sorriso _E eu não pretendo te dar de mão beijado pra ele.

_Não é assim que funciona, Ricardo.

_Bernardo, vamos falar a verdade._ ele falou voltando ao tom de voz sério _Entre todas as suas características, eu destaco a sua tendência à inércia. Você precisa de alguém te empurrando pra frente pra você continuar caminhando. Meu beijo foi exatamente isso.

_Então, talvez Rafael esteja me empurrando pra frente também._ argumentei.

_Sim, só que ele está te empurrando pro caminho errado.

_Não acho que exista caminho certo e errado nessa questão.

_Existe sim. O caminho que vai te fazer infeliz é o caminho errado.

_Não acha que você está sendo um pouco arrogante?

_Não. Talvez, mas eu tenho esse direito, sabe por quê? Porque eu cansei de deixar você escolher. Você faz péssimas escolhas. Eu vou fazer a escolha por você. Ou melhor dizendo, vou te empurrar pra você fazer a escolha certa.

_Que papo de doido é esse, Ricardo?

Ele tomou fôlego e falou com todas as letras:

_Eu te amo. Eu achei que tinha deixado esse sentimento para trás, mas não deixei. Eu vou te fazer feliz, muito mais feliz que ele. Sabe por quê? Porque nós estamos caminhando na mesma direção, ao contrário de vocês. E nem você, nem ele estão dispostos a mudar a rota. Opostos podem até se atrair, Bernardo, mas não ficam juntos. Nós funcionamos muito melhor do que vocês, e você sabe disso._ ele fez um breve silêncio _Mas é muito injusto eu ficar esperando a sua decisão. Eu não vou ser a sua segunda opção, Bernardo. Eu não vou ficar com as sobras dele. Você vai ter que tomar uma decisão e viver com ela. Um mês, Bernardo. Eu te dou um mês para uma decisão. Aliás, quarenta dias, na sua festa de formatura. Nós não vamos nos falar durante esses quarenta dias, você vai usá-los para refletir. Eu vou na festa porque Alice me convidou e encontro com você lá. Ou saímos de lá de mãos dadas, ou nunca mais, você me entendeu?

_Você nem cogitou querer continuar só como meu amigo?_ perguntei ainda atordoado.

_Acho que já passamos desse ponto a muito tempo, Bernardo. Não podemos mais ser amigos depois de tudo que aconteceu entre a gente.

_Ricardo, eu...

_Quarenta dias._ ele me interrompeu _Espero que você tome a decisão certa. Um beijo, meu amor.

E desligou o telefone, me deixando com o olhar perdido encarando a parede. Voltei a cair na cama e me permiti chorar um pouco. Do ponto de vista dele, era muito justo o que ele estava me pedindo. Ele não queria mais conviver com a dúvida se um dia eu largaria Rafael para ficar com ele. Mas a minha natureza é de muita indecisão, e consequentemente de inércia como ele apontou. Rafael sabia disso muito bem e aprendeu a usar isso a seu favor. Praticamente todo o processo de requisição do visto foi guiado por ele, pois ele sabia que eu ainda tinha dúvidas. Mais: ele tomou a dianteira com medo de que eu pensasse demais e desistisse.

Se a balança da minha decisão sempre pesou pro lado de Rafael, agora ela desequilibrou, pois no outro lado entrou a minha família, meus amigos, Ricardo e o meu afilhado. Era uma briga muito injusta, Rafael contra todo mundo. Eu conseguiria viver feliz sem Rafael? Eu conseguiria viver feliz sem todos os outros? Até aqui, posso falar sem medo de exageros, foi a maior decisão da minha vida.

[...]

Vai sair?_ perguntou minha mãe quando passei pela sala.

Minha esperança era que ela não me visse, mas ela parecia ter o superpoder de se materializar de repente em qualquer cômodo da casa.

_Ah, vou almoçar na casa do Pedro._ respondi.

_Não acha que precisamos conversar?_ perguntou em tom de bronca.

_Mãe, podemos deixar isso para outra hora?

Ela bufou.

_Você é inteligente e esclarecido, Bernardo. Nós te criamos muito nem nesse sentido. Eu só espero que você saiba usar isso para dizer a Rafael o que você tem que dizer.

_Como assim?

_Você não vai, Bernardo.

_Você não pode me proibir, mãe. Eu sou maior de idade e em breve financeiramente independente de vocês.

_Não falei em tom de proibição, foi uma afirmação. Você não vai._ ela falou me encarando _Está escrito nos seus olhos que você não vai.

Eu fiquei atordoado pela certeza que ela tinha que eu não ia. Ela me conhecia tão bem assim?

_Você se engana dizendo pra si mesmo que está em dúvida, mas é uma mentira._ ela falou indo pra cozinha _Você está claramente sofrendo. E a dúvida não causa sofrimento, a certeza sim.

[...]

_Vai. Falta você me falar pra não ir._ falei.

_Não vá._ respondeu Pedro _Independente de todos os motivos egoístas que eu tenha pra você ficar, fique por você mesmo. Você não quer ir.

_Eu posso te dar um milhão de exemplos de coisas que eu nunca quis fazer, mas quando eu fiz, agradeci por ter feito!

_Você está tentando convencer a mim ou a você mesmo?_ ele devolveu debochado.

Bufei de raiva. Todos falavam a mesma coisa. Eu queria ter ao menos uma opinião favorável à minha ida pra eu montar um debate mais justo na minha cabeça, mas as pessoas não estavam ajudando.

_Esse medo que eu tenho de não me adaptar à minha nova vida não é pura covardia? Eu não estou desistindo sem nem mesmo tentar?

_Saltar de um penhasco na esperança de milagrosamente aprender a voar não é coragem, é burrice._ ele respondeu _Eu acho nós dois muito parecidos neste aspecto, Bernardo. Nós somos muito apegados à nossa terra e à nossa família. Acho que é por termos crescido em famílias grandes. A gente não consegue viver muito longe daqui, é a nossa sina: nascer e morrer em Belo Horizonte. E não há nada de covardia ou provinciano nisso. É apenas quem nós somos.

Ele fez uma pausa e me encarou, como se para que eu absorvesse com cuidado suas palavras.

_Mas não é definitivo._ argumentei _Rafael disse que serão só dois anos, depois a gente volta.

_Não vão só dois anos, e você sabe disso. Ofereceram a ele dois anos de estabilidade, mas ele vai continuar subindo dentro da empresa por lá. A empresa não investiria nele à toa. Se vocês fossem voltar, seria depois de dez ou quinze anos lá, quando ele pudesse pedir transferência. Mas vamos ser sinceros, Rafael vai adorar o Canadá. É o lugar dos sonhos dele. Ele não vai voltar, Bernardo.

Cada palavra de Pedro soava como uma dolorosa verdade. Não seriam só dois anos, seria uma mudança definitiva.

_Há dois tipos de pessoa._ falou Pedro _Gente que é feliz com um milhão de amigos, festas, viagens para todo lugar do mundo, conhecendo novas culturas. Enfim, gente que só é feliz em movimento. E tem gente que é feliz com sua casinha no campo, seus livros, seus discos, seus filhos. Gente que é feliz na calmaria. Rafael é do primeiro tipo, eu e você somos do segundo. É simples assim. E não acho que nenhum de vocês dois esteja disposto a mudar pelo outro.

_Então eu devo simplesmente desistir de tudo o que eu vivi com Rafael? Jogar toda nossa história fora?_ perguntei quase chorando.

_O que você deve fazer é falar com ele tudo que está passando na sua cabeça. Vocês devem achar a solução juntos.

Abaixei minha cabeça para esconder as lágrimas que teimavam em querer cair numa frequência anormal nos últimos dias.

_Se for para vocês realmente terminarem,_ falou Pedro _melhor que seja aqui com um resto de amor um pelo outro, do que lá fora com vocês se odiando.

Terminar com Rafael? Como eu tinha chegado àquele ponto?

[...]

_Oi._ Rafael falou abrindo a porta com um sorriso no rosto.

_Oi._ respondi sem jeito.

Aquela seria a derradeira noite. Eu contaria a ele tudo que estava na minha cabeça: do beijo de Ricardo à minha resistência quanto a viajar pro Canadá.

_Vem._ ele falou me entendendo a mão.

Eu peguei na sua mão e ele me puxou delicadamente para um beijo. Foi um beijo muito calmo, romântico, amoroso. Ainda consigo lembrar como era forte o cheiro do seu perfume amadeirado, e como era bom suas mãos apertando carinhosamente a minha cintura. Ainda lembro como ele dominava muito bem a mecânica do beijo, e como ele conseguia beijar usando o corpo inteiro, te fazendo sentir como a única coisa que realmente importava no mundo.

Ele me levou até a varanda do apartamento onde ele tinha montado uma pequena mesinha para nós dois jantarmos.

_Eu fui um idiota, Bernardo._ ele falou _Eu tenho plena consciência disso. Não vai mais acontecer, eu juro. Eu confio em você. E ele parece um bom rapaz, não parece alguém capaz de sacanear o namoro dos outros assim. Se você diz que ele é seu amigo, eu não posso julgar, pois só você sabe o quanto ele te ajudou lá na França. Se ele é se amigo, ele é meu amigo também. Eu te prometo que não vamos viajar sem antes eu fazer com que ele me perdoe pelo meu papel de ridículo.

Quando ele terminou, eu já estava chorando, mas ele não percebeu de imediato. Achou que fosse de emoção. Mas não, era medo. Era um medo terrível de que tudo terminava ali. O que foi que fiz? O que eu estava prestes a fazer com ele?

_O que foi?_ ele perguntou preocupado ao ver que tinha alguma coisa de errado.

Eu não pude esconder por mais nenhum segundo.

_Eu beijei Ricardo.

Seus olhos se paralisaram em mim, como se o choque daquela revelação o deixasse até sem saber o que pensar. Totalmente inesperado, ele nunca viu aquilo vindo. Quando Rafael se permitiu piscar, seus olhos já se mostravam vermelhos. Mas o que eu vi no seu olhar não foi raiva. Acho até que seria melhor se fosse. O que eu vi no seu olhar foi uma profunda dor, uma dor que eu nunca tinha visto ele sentir.

Tudo o que conseguia pensar era:

“Aquele beijo a segundos atrás fora nosso último?”

Durante os dois anos de namoro com Rafael, nós nunca tivemos uma grande briga. Certo, tínhamos algumas pequenas discussões, e às vezes passávamos alguns dias sem nos ver para esfriar a cabeça, mas eu sempre achei aquilo muito normal. Nossas brigas nunca iam em frente, um sempre acabava cedendo pelo bem do relacionamento e a vida seguia. Hoje eu sei que essa estratégia nos fez mal. Nós nunca discutimos seriamente sobre nossas diferenças, sobre o futuro do nosso relacionamento. Todas conversas sobre o assunto eram muito vagas, como se ambos soubéssemos que havia ali uma grande briga. Foi como uma panela de pressão. Acumulamos mágoas e ressentimentos um do outro por dois anos sem perceber. Até que na nossa primeira briga realmente grande, tudo veio à tona. Por causa disso, aquela acabou por ser a nossa última briga também.

Rafa não falou nada de imediato. Ele apenas seguia me olhando com os olhos vermelhos. Mais do que raiva ou uma simples tristeza, eu via no seu olhar uma dor profunda. Eu tinha enfiado uma espada no seu coração sem aviso prévio. Eu nunca lhe dei nenhum tipo de sinal que eu seria capaz de fazer aquilo com ele algum dia. Eu cheguei na calada da noite por trás dele e o apunhalei.

_Você fez o que?_ ele perguntou como se não estivesse acreditando no que tinha ouvido.

_Rafa, por favor._ falei chorando _Eu não sei o que deu eu mim, eu...

_Repete para mim o que você fez?_ ele falou com raiva na voz _Eu preciso ouvir de novo para saber que é verdade!

_Eu... Eu... Eu beijei Ricardo.

Antes que eu pudesse sequer adivinhar seus movimentos, seu punho veio muito rápido na direção do meu rosto. O impacto do soco na minha bochecha me fez cambalear para trás e cair sentado no chão da sua sala. A dor na minha bochecha, a surpresa, o fato dele ter chegado àquele ponto, e, principalmente, a consciência que eu causei aquilo me derrubaram. Fiquei ali deitado no seu chão sem me mover e chorando baixinho. Não para comovê-lo de alguma forma, mas por realmente querer chorar, tentar aliviar um pouco a minha cabeça.

Ele tampouco foi me ajudar a levantar. Ele nem mesmo parecia alguma coisa arrependido. E eu não sei se deveria estar. Eu mereci? Ele cobriu o rosto com as mãos e sentou no sofá. Em algum momento, eu parei de chorar e fiquei ali no chão por puro medo. Medo de que se eu me levantasse, seria para ir embora e nunca mais voltar. Ficamos os dois no mais mortal dos silêncios por longos minutos.

_Quem beijou quem?_ ele perguntou com frieza na voz.

Eu não queria que a nossa conversa caminhasse por aquele caminho, mas eu não tinha como escapar. Eu conhecia Rafael muito bem, ele iria querer ouvir cada detalhe sórdido para aumentar sua raiva.

_Ele me beijou._ falei sem olhá-lo.

_Aquele filho de uma puta!_ ele gritou raivoso.

Rafael começou a caminhar impaciente de um lado o outro da sala. Era como se ele tivesse que fazer alguma coisa no momento, caminhar e maldizer Ricardo que fosse, ou senão ele explodiria.

_Eu sempre soube que ele não prestava! Eu sabia que ele só estava esperando a primeira oportunidade! Viado desgraçado!_ e chutou com força uma almofada que estava caída no chão.

Me arrastei e fiquei sentado no chão encostado numa parede. Rafael estava muito vermelho, o que era difícil de acontecer por ele ser moreno claro. Seus olhos vermelhos estavam inflamados de raiva, e ele não parecia ligar para as lágrimas que caíam. Me lembrei de tê-lo visto naquele estado só uma outra vez: quando ele descobriu que Eric estava se encontrando com nós dois ao mesmo tempo.

Ele veio até mim e se agachou até ficar com o rosto a centímetros do meu. Eu não queria encarar seu olhar, mas ele pegou meu queixo e me forçou a encará-lo. Sua expressão em nada lembrava o cara por quem eu me apaixonei, o garoto de um milhão de sorrisos. E quem mais além de mim eu poderia culpar?

_Me diz: você gostou, não foi?_ perguntou apertando com força meu queixo _Você estava sedento pelo beijo do seu príncipe encantado, não estava?!

_Eu sempre achei que fosse você o meu príncipe encantado._ respondi num tom triste.

_Mentiroso!

Ele forçou meu queixo contra a parede, me fazendo bater a cabeça.

_Eu sou só um palhaço pra você!_ ele falou agora chorando para valer e com a voz quebrada _Um degrau na sua escada para aquele desgraçado! Você sempre mentiu pra mim!

_Eu nunca menti pra você._ respondi sem nenhuma emoção na voz.

_Não?!_ gritou em encarando.

_Não. Eu nunca disse que tinha deixado de amar Ricardo.

Seus olhos brilharam de raiva e ele veio pra cima de mim. Eu vi o movimento do chute se desenhar na sua perna direita, mas desta vez eu fui mais rápido e desviei. Ele chutou a parede e saiu mancando com a dor. Me levantei e ele ficou me encarando.

_Vem._ falei abrindo os braços _Pode me bater. Pode descontar toda sua raiva em mim. Eu aguento.

Ele veio pra cima de mim. O primeiro soco no meu ombro doeu, o segundo doeu menos, o terceiro ainda menos, e assim ele foi perdendo força. Eu não aguentei mais e o prendi num abraço. Ele tentou resistir por um tempo, mas depois desistiu e começou a chorar descontroladamente no meu ombro. Foi inevitável chorar junto. Uma das cenas mais tristes da minha vida: nós dois abraçados ali naquela sala nos afogando em lágrimas. Era como se tivéssemos certeza do fim.

_Eu te amo tanto, Rafa._ falei no seu ouvido.

_Quem ama não faz isso! Como você pôde fazer isso comigo?!

_Me desculpa...

_Por que você fez isso comigo?!

_Porque eu não quero ir com você pro Canadá.

Não era aquela toda a verdade? Eu acredito muito no poder do subconsciente. Eu poderia ter impedido Ricardo antes dele me beijar. Eu já tinha feito com Rafael quando eu voltei ao Brasil. Por que eu não fiz de novo? Acho que no fundo eu queria um motivo para não ir com Rafael. Mais do que um motivo para eu mesmo não ir, eu precisava de um motivo para ele querer ir sem mim. Rafael era um romântico incorrigível, eu tenho certeza que ele desistiria da viagem para ficar comigo. Mas eu nunca seria capaz de ficar entre ele e seu sonho, por mais que o amasse.

_Isso não é justificativa._ ele falou me soltando.

_Eu sei, me desculpe.

Ele se jogou no sofá com uma cara de derrotado.

_Por que você me deixou sonhar?_ ele perguntou.

Sua voz não tinha mais raiva, mas uma profunda tristeza.

_Você tem ideia do quanto isso é cruel?_ ele perguntou _Me deixar sonhar com nosso futuro, nossa casa, com a gente caminhando de mãos dadas na neve. E você sabia que não ia ser assim. Por que você disse sim? Foi só pelo prazer de me machucar?

_Eu nunca quis te machucar, Rafa._ respondi voltando a chorar _Em algum ponto eu achei que queria. Em algum ponto eu pensei que eu poderia fazer do seu sonho o meu também.

_E o que mudou isso?

_Ricardo...

Ele riu sem humor nenhum na voz, como se não conseguisse acreditar no que ouvia.

_Mas não do jeito que você pensa._ continuei _ Eu nunca pensei em te trocar por ele. A vinda dele me fez perceber que eu não quero deixar as pessoas da minha vida para trás. Me fez perceber que eu seria infeliz lá com você.

_Agora tanto faz._ ele respondeu _Ele ganhou. Vocês podem criar sua família feliz aqui juntos.

_Eu ainda estou usando a sua aliança._ comentei.

_Por pura formalidade.

Falando nisso, ele tirou a aliança do dedo dele e a jogou na mesinha de centro. Era assim que tudo acabava? Todos os sonhos, todas as promessas, todos os nossos possíveis futuros evaporavam no ar assim com aquele simples gesto? Toda uma história de amor jogada no lixo? No fim, nossa história de amor seria somente isso, uma história que contaríamos pros nossos filhos e netos?

Eu comecei a chorar e ele me seguiu. Eu não consegui tirar a aliança, eu não tinha forças para isso.

_Não me venha com essa, Bernardo._ ele falou _Você não veio aqui me pedir perdão, você veio aqui para terminar comigo. Só que você é um covarde, não tem coragem de fazer nem isso. Você veio aqui me fazer terminar com você.

_Eu te amo, Rafa._ falei com toda força que ainda me restava.

_Ama uma porra!

_Amo!_ falei firme _Só que no fim, amor não era tudo. Nós nos amamos, mas nos esquecemos do resto.

_É o Ricardo que você ama, Bernardo. Desde o segundo que ele apareceu na sua vida.

_Eu amo Ricardo. Mas eu te amo mais. E eu vou repetir isso até meu último suspiro.

_Eu não acredito.

_Você é um sonhador, Rafa._ falei sorrindo para ele, apesar de ainda chorar _Você simplesmente pregou em mim uma plaquinha de “amor da minha vida” e esperou que a vida cuidasse do resto. Mas não funciona assim. Se você visse a vida pelos meus olhos, viria que não é assim.

_Não use esse seu realismo como desculpa para sua covardia._ ele respondeu _Covarde demais para ir, covarde demais pra se deixar levar, covarde demais para não aguentar o tranco.

_Disso você não pode me acusar. Quando todo mundo virou a cara pra gente, eu peguei na sua mão e enfrentei todos.

_Você acha que essa era a grande prova, Bernardo? Não era. Você acha que eu não sei os problemas de se morar junto? O que é o olhar atravessado dos outros perto do olhar atravessado da pessoa que você ama depois de uma briga? Nada! Você acha que se assumir para sua família era o grande desafio? O grande desafio é pegar um bebê no colo e prometer dar a sua vida pela dele! Isso é desafio! Você acha que vai ter outra oportunidade de fugir para Paris assim que os problemas se apertarem? Não, sabe por quê? Porque você teria uma família, pessoas que dependem de você e que você não pode abrir mão. Isso é casamento, encarar seus problemas de frente a despeito de qualquer vontade de jogar tudo pro alto. E você não aguentou esse tranco. Digo e repito: covarde!

Não que as lágrimas alguma hora tenham deixado de cair, mas ouvir tudo aquilo da boca dele fez o choro se intensificar. Talvez seja verdade, talvez eu nunca tenha deixado de ser fraco, covarde. Talvez, ao me assumir, eu tenha simplesmente armado uma rede de proteção antes para só então pular. De todas as coisas difíceis de ouvir que Rafa me disse aquela noite, aquelas palavras foram as que mais me marcaram. Volta e meia elas voltam à minha cabeça...

_Talvez você tenha razão._ falei limpando os olhos _Talvez eu ainda seja o mesmo covarde. Me desculpe por não estar disposto a pular nessa com você, eu não consigo.

Ele não respondeu. Permaneceu como estava, sentado no sofá com a cabeça recostada e encarando teto.

_Sabe qual o nosso problema, Rafa?_ falei _Dez anos.

Ele me encarou curioso.

_Nós temos vinte e dois anos de idade, Rafa, e estamos falando em casamento! Isso é loucura. Não importa o quanto a gente se ama, nós não estamos pronto pra isso. Sim, o casamento implica em todos os desafios que você citou, mas não acho que você estaria mais preparado para encará-los do que eu estou agora. Nós estamos começando a vida agora, como vamos nos prender à outra pessoa assim? E não estou falando de fidelidade. Inevitavelmente, num casamento a gente coloca nossos sonhos de lado por causa do bem estar geral. Aos vinte e dois anos de idade você acha que estamos prontos pra jogar isso nas costas um do outro assim? Quanto tempo você acha que a gente duraria? Quanto tempo até a gente se odiar?

_Mais uma vez, seu realismo me soa como simples medo de encarar o desafio.

Balancei a cabeça. Como era teimoso! E como eu sempre amei aquela sua teimosia, sua perseverança!

_Nós nunca caminhamos na mesma direção, Rafa, só não queríamos ver isso._ falei _Enquanto estávamos aqui, presos financeiramente aos nossos pais e vivendo lado a lado, estava tudo bem. No momento que a faculdade está acabando e temos a liberdade de escolher nossos caminhos, escolhemos caminhos diferentes.

_Se você sempre soube que acabaria assim, por que deixou que chegássemos a esse ponto?_ me perguntou com um sorriso triste.

Dei de ombros indicando não saber a resposta.

_Não sei... Talvez você tenha me contaminado com um pouco do seu romantismo. Talvez uma pequena parte de mim tenha acreditado que o amor seria o suficiente para resolver todos os nossos problemas.

Fiquei calado por um tempo admirando a aliança que ainda brilhava no meu dedo.

_Eu não quero tirar a aliança._ falei com a voz embargada.

_Vai ter que tirar. Como Ricardo colocaria a dele?_ comentou com um sorriso amargo.

_Eu não vou correr pra cama dele assim que sair daqui._ respondi o encarando _Pra ser sincero, eu não faço a mínima ideia se eu vou ter alguma coisa com Ricardo. Mesmo se eu quisesse, vai demorar meses para eu me curar desta noite.

_Ele te esperou por dois anos, vai conseguir esperar mais um pouco._ completou ainda mais amargo.

Ficamos mais um longo tempo em silêncio.

_Acho que está na hora de você ir embora, Bernardo._ ele falou enfim.

Eu sabia que quando passasse pela porta daquele apartamento, seria definitivo. Me segurei naqueles nossos últimos minutos juntos com o mesmo desespero de um náufrago ao segurar o colete salva-vidas. Ele me acompanhou até a porta.

_Posso te pedir uma coisa, Rafa?

Ele não respondeu, continuou me encarando.

_Por favor, não me odeie.

Ele sorriu. O primeiro sorriso de verdade que ele me deu desde que aquela briga começou.

_Eu te amo, Bernardo.

E eu sorri para ele de volta. Por poucos segundos, meu coração se aqueceu com a esperança de alguma outra possibilidade que sequer existiu.

_Mas eu acho que também fui contaminado com um pouco do seu realismo. Amor não é tudo._ ele completou.

Sorri triste e lutei para segurar minhas lágrimas. Me aproximei dele e lhe dei um demorado beijo na bochecha.

_Adeus, Rafael.

_Adeus, Bernardo.

Lhe dei costas e só ouvi a porta se fechar quando eu já estava no elevador. Eu já tinha chorado muito aquela noite, então as lágrimas que me acompanharam até em casa eram bem menos dramáticas, silenciosas. Durante todo o caminho eu me pegava distraído olhando para aliança. E eu não a tirei quando me deitei também. Na verdade, só fui conseguir tirar aquela aliança cerca de uma semana depois. Ali, no escuro e na solidão do meu quarto, dormi murmurando:

_Adeus, Rafa...


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Comentários


foto perfil usuario sigilofortaleza26

sigilofortaleza26 Comentou em 14/08/2024

Fiquei com raiva do Bernardo, que cara ridiculo. Nem sei se vou continuar lendo

foto perfil usuario sigilofortaleza26

sigilofortaleza26 Comentou em 14/08/2024

Fiquei com raiva do Bernardo, que cara ridiculo. Nem sei se vou continuar lendo




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Ficha do conto

Foto Perfil contosdelukas
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Nome do conto:
Bernardo [97/98] ~ Reta Final

Codigo do conto:
217993

Categoria:
Gays

Data da Publicação:
14/08/2024

Quant.de Votos:
1

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0