Meu tio olhou para mim com aquele jeito sério, mas com uma fagulha de decisão no olhar.
— Rafa, eu vou precisar sair agora, tenho uns negócios pra resolver — disse, com um tom que eu já sabia o que queria dizer.
Franzi o cenho, confuso e um pouco irritado.
— Tio, a essa hora? — perguntei, tentando não transparecer o cansaço que já me tomava.
Ele deu um sorriso frio, um daqueles que mostravam que ele já estava determinado a fazer o que estava planejando.
— Vou atrás desses bandidos que fizeram isso com seu pai. Vou fazer umas ligações e talvez vá pra casa. E, sinceramente, você devia fazer o mesmo, Rafael.
— Eu não vou sair daqui, quero estar perto do meu pai.
Meu tio respirou fundo, me puxando para um abraço apertado. Depois, me entregou um celular pequeno e antigo.
— Toma, esse é meu celular secreto — disse, com um sorriso meio safado. — Só uso pra falar com umas mulheres... e uns homens, às vezes — piscou, tentando aliviar o clima.
Não consegui segurar uma leve risada, mesmo com a tensão no peito.
— Qualquer coisa, me liga, tá? Amanhã cedo estou de volta. Bora, JP! — chamou, e deu uma última olhada para mim, como se quisesse me dar um pouco mais de força antes de sair.
Eu fiquei ali, vendo os dois irem embora, sentindo o peso da responsabilidade e o vazio do hospital.
Meu tio e JP chegaram juntos, e mesmo que a curiosidade tentasse me puxar para perguntar sobre isso, não havia espaço na minha cabeça para nada além do estado do meu pai. Preferi não adentrar nesse assunto, evitando qualquer distração, porque minha mente estava voltada completamente para o Silas. Meu coração estava apertado, como se houvesse um nó que não desatava. Tudo o que eu queria naquele momento era ver meu pai bem, vê-lo acordar e saber que ele ainda estaria ali, comigo.
Sentei na sala de espera do hospital, perdido em pensamentos. A realidade de estar em um hospital público, vendo a movimentação constante de pessoas, médicos, enfermeiros, todos na correria de suas rotinas, parecia um contraste enorme com a espera silenciosa e angustiante que eu enfrentava. Comecei a pensar na vida, nas tantas coisas que ainda tínhamos para viver juntos, e em como cada segundo longe dele parecia uma eternidade.
Enquanto eu estava mergulhado em pensamentos, o professor Márcio apareceu e se aproximou com um olhar acolhedor.
— Ainda por aqui, Rafa? — ele perguntou, lançando-me um sorriso leve.
— Sim, professor. Não consigo ir pra casa. Não quero ficar longe do meu pai, sabe? — respondi, tentando manter a voz firme.
— Eu entendo. Mas, olha, seu pai está estável, e até pela manhã é provável que o médico libere a transferência pro São Vicente. Até lá, não há muito o que você possa fazer aqui. Talvez seja bom você descansar um pouco.
— Sei disso, mas… prefiro ficar por aqui, só pra me sentir mais próximo dele — respondi, tentando justificar minha permanência.
O professor assentiu e, após alguns segundos, sugeriu:
— Bom, que tal uma volta pelo hospital? Posso te mostrar como é a rotina por aqui, a vida real de um hospital público. Pode ser uma distração e tanto.
— Pode ser — aceitei, curioso, apesar do cansaço e da preocupação.
Ele me guiou pelo corredor, onde passamos por diversas pessoas que pareciam perdidas em suas próprias dores e esperas. Vi pacientes em macas encostadas junto às paredes do corredor, com olhares que expressavam resignação, cansaço e esperança. Márcio parou brevemente em frente a uma dessas macas e comentou:
— Aqui, muitas vezes, faltam vagas nas alas principais, então alguns pacientes acabam esperando nos corredores. É triste, mas essa é a realidade. A equipe se desdobra pra dar conta, mas nem sempre é suficiente.
Eu observava em silêncio, sentindo um peso no peito, percebendo a dimensão das dificuldades enfrentadas por todos ali. Seguimos em frente e, em pouco tempo, chegamos ao setor cirúrgico. O professor parou e, gesticulando para as portas fechadas, explicou:
— Essa é a ala das cirurgias. Um lugar de grande tensão e esperança ao mesmo tempo. Aqui dentro, os médicos lidam com situações extremas todos os dias. Cada sala representa um universo de luta pela vida.
Continuamos andando, e ele me levou até a ala de queimados. Márcio parou por um momento, seu rosto sério.
— Essa é a ala de queimados — disse, com uma voz grave. — É um dos setores mais delicados. Os pacientes aqui passam por dores intensas, e muitos precisam de tratamento constante para a recuperação da pele.
A visão ali era impactante. Pela janela, consegui ver alguns leitos ocupados por pessoas cobertas de bandagens, algumas com equipamentos respiratórios, outras apenas deitadas, com expressões de dor e tristeza. A intensidade das queimaduras que cobriam seus corpos deixava claro o quão frágil a vida podia ser. Aquilo me fez apertar os punhos, em parte pela angústia de ver tanta dor e pela sensação de impotência.
— Parece pesado, eu sei — continuou Márcio, notando meu olhar. — Mas também é um lugar onde a força das pessoas brilha. Muitos desses pacientes enfrentam o impossível todos os dias.
Seguimos em direção à farmácia do hospital, um local repleto de prateleiras com frascos e caixas organizados em fila. Ele me mostrou também o local de descanso dos médicos e enfermeiros, um espaço modesto com algumas poltronas desgastadas e um silêncio pesado. Após essa caminhada, finalmente chegamos à cantina.
Sentamos e pedimos dois cafés. O professor olhou para mim com uma expressão tranquila.
— E então, Rafa… como você tá segurando tudo isso? — ele perguntou, gentilmente.
— Sabe, professor, acho que nunca estive tão assustado. Ver o meu pai naquela situação… tudo isso é tão surreal pra mim — confessei, finalmente desabafando.
— Entendo. E é natural que você se sinta assim. Só não esqueça que estar ao lado dele, como você está fazendo agora, é o maior apoio que ele poderia ter — disse, me encorajando com um aperto no ombro.
Bebi um gole do café, sentindo o calor reconfortante. Aquele breve momento de calmaria me ajudou a reequilibrar um pouco.
Adormeci sem querer na recepção do hospital, o cansaço me vencendo após a longa noite. Quando abri os olhos, encontrei Bernardo e o tio Alysson ao meu lado, segurando copos de café. Eles me deram um abraço acolhedor, e meu tio falou, com um tom mais animado:
— Rafa, tenho boas notícias. Seu pai vai ser transferido pro São Vicente. Lá ele vai receber todo o amparo necessário. Acho que, com sorte, até o fim da tarde conseguimos vê-lo.
Senti um alívio imediato. Apesar da situação ainda ser delicada, o fato de ele estar indo para um hospital melhor me dava esperança.
— Rafa, é melhor você ir pra casa um pouco — sugeriu Alysson. — Vá com o Bernardo, tome um banho, almoce, tente dormir um pouco. Seu pai está bem, e ele vai continuar bem.
— Tio, eu não quero ficar longe… — respondi, hesitante.
O rosto do meu tio endureceu pela primeira vez em muito tempo, e sua voz saiu firme.
— Porra, Rafael! Você precisa se cuidar também. Sua mãe tá preocupada, sabia? A Claudia teve que dar um calmante pra ela conseguir descansar um pouco. Se você não estiver bem, como acha que vai ajudar sua mãe e sua irmã?
Senti o peso das palavras dele e abaixei a cabeça, sem jeito.
— Tá bem, tio. Desculpa… Vou pra casa, e aproveito pra passar na minha mãe também.
Ele assentiu, parecendo um pouco mais calmo. Quando o silêncio se instalou, o som da televisão ao fundo chamou nossa atenção. No noticiário, uma repórter falava sobre o assalto. Eles mostravam imagens de câmeras de segurança e mencionavam o nome do meu pai. Os rostos dos bandidos não apareciam claramente, mas a brutalidade do ataque era evidente.
O olhar do meu tio se estreitou, e a expressão furiosa tomou conta de seu rosto.
— Já, já a gente acha esses bandidos… — ele murmurou, com uma determinação feroz.
Eu e Bernardo trocamos um olhar silencioso. Sabíamos que essa situação estava longe de ser resolvida, mas a presença do meu tio e do apoio de todos ao meu redor me davam forças.
Quando chegamos na casa da minha mãe, ela me envolveu em um abraço apertado, o rosto marcado pela preocupação. Era visível o alívio dela ao me ver bem, mas as emoções estavam à flor da pele. Nos sentamos, e contei que o pior já havia passado, garantindo que em breve ela poderia ver o Silas. Choramos um pouco, e a presença dela me fez sentir que, aos poucos, as coisas poderiam se acalmar.
Depois de algum tempo, Bernardo me levou até minha casa. Precisávamos descansar, e ele me convenceu a tomar um banho. Entramos juntos, mas nada além de cumplicidade rolou. A água quente e a presença dele me ajudaram a aliviar o cansaço da noite. Após o banho, deitamos na cama e ficamos em silêncio, até que ele começou a acariciar meu cabelo. Sem que eu percebesse, acabei adormecendo, a cabeça encostada em seu peito, onde os pensamentos mais agitados finalmente se aquietaram.
Acordei com um barulho de conversa baixa. Quando abri os olhos, vi Bernardo ao telefone com meu tio. Após desligar, ele se aproximou com um sorriso.
— Seu pai já está no São Vicente — ele disse. — E parece que à tarde já poderá receber visitas.
Um sorriso largo se espalhou pelo meu rosto, e abracei Bernardo, trocando um beijo rápido, quase um reflexo de alívio.
— Preciso ir pro hospital — falei, já me preparando para levantar.
— Tem certeza? — ele tentou argumentar. — Não sei se adianta muito, e você ainda precisa descansar.
— Preciso estar perto dele, Bernardo. Pra mim, isso importa.
Ele assentiu, entendendo que seria inútil discutir. Fomos juntos ao hospital, onde meu tio já nos aguardava. A expressão dele era calma, e suas palavras trouxeram mais alívio:
— Seu pai está bem, Rafa. Agora é só esperar ele acordar, e então poderemos avaliar se ficou alguma sequela. Mas os médicos estão otimistas.
Senti o peso da angústia se dissolver um pouco mais. Logo depois, Sofia e Yves chegaram. Como de costume, Yves manteve distância, me ignorando completamente. Sua postura fria e arrogante não era novidade, mas percebi que ela fazia questão de demonstrar seu desagrado. Talvez ainda me culpasse pelo término do seu casamento com meu pai, mas eu preferi ignorar. Tinha coisas mais importantes em mente do que a má vontade dela.
Passamos o resto da tarde na expectativa, a cada notícia dos médicos ganhando uma nova dose de esperança. Estar ali, com a família, ao lado de Bernardo, era o apoio que eu precisava para enfrentar aquele momento.
Ao ouvir que meu pai havia finalmente acordado, senti um peso imenso ser tirado dos meus ombros. O médico informou que, por enquanto, apenas uma pessoa poderia visitá-lo. O olhar de Yves veio carregado de desprezo, mas eu ignorei. Esse momento era meu. Meu tio hesitou, tentando me convencer a esperar, mas insisti.
— Eu preciso vê-lo, tio. Eu tenho o direito de estar com ele agora.
Finalmente, ele concordou, e enquanto caminhávamos pelo corredor, o médico ia me dando algumas recomendações sobre o estado delicado de Silas. Respirei fundo e entrei no quarto, onde ele estava deitado, os olhos fixos em mim assim que me aproximei. Quando nossos olhares se encontraram, meus olhos se encheram de lágrimas. Ele sorriu, e eu não consegui segurar as lágrimas, que escorreram livremente.
Silas estendeu a mão com dificuldade, e eu a segurei firme, sentindo o calor dela em contraste com a frieza dos últimos dias de medo e incerteza.
— Pai… — comecei, mas ele apertou minha mão suavemente, indicando que eu apenas ouvisse.
— Filho… — ele murmurou, a voz fraca, mas cheia de emoção. — Eu… faria qualquer coisa por você, Rafa. Eu tentei… — ele engoliu em seco, com os olhos brilhando. — Tentei te proteger com a minha própria vida. Não posso… não consigo imaginar este mundo sem você. Eu… eu te amo mais do que qualquer coisa, Rafa. Mais do que minha própria vida.
Minhas lágrimas vinham sem controle, e meu coração parecia quebrar e se reconstruir ao mesmo tempo com cada palavra que ele dizia.
— Pai… eu nunca vou te abandonar. Nunca. Eu tô aqui, e vou estar sempre. — Minha voz falhava, mas eu precisava que ele soubesse. — Você não vai enfrentar nada disso sozinho, eu prometo. Eu te amo demais pra deixar você, pra te perder.
Ele respirou fundo, como se cada palavra exigisse uma força que ele não tinha, mas mesmo assim continuava.
— A cada segundo que eu estava lá… com aqueles homens… só pensava em você. — Ele piscou, segurando as lágrimas que pareciam prestes a escapar. — Meu filho, você é minha vida. Quando te vi em perigo, pensei que preferia que fosse eu a sofrer… a perder tudo… mas você não.
Acariciei a mão dele com todo o carinho que conseguia transmitir, tentando segurar o choro para que ele sentisse a minha força.
— Pai, não fala assim. Eu tô aqui, e vou estar sempre, e nós vamos passar por isso juntos, tá? Você é meu herói, e eu te amo. Não importa o que aconteça, eu nunca vou te deixar. Vou estar aqui, do seu lado, sempre que você precisar.
Ele fechou os olhos por um momento, respirando fundo, como se estivesse absorvendo todas as minhas palavras.
— Obrigado, filho — ele murmurou, os olhos marejados. — Eu sei que a vida às vezes nos coloca nesses caminhos difíceis… mas saber que tenho você… me dá força. Eu prometo que vou me recuperar, que vamos viver cada momento juntos. E você… nunca se esqueça de quanto eu te amo.
Eu me aproximei e o abracei com cuidado, sentindo o calor e a fragilidade dele, mas também a força que nos mantinha unidos. Naquele momento, nada mais importava. Eu sabia que, não importa o que acontecesse, estávamos juntos, e isso bastava.
Quando me afastei, com os olhos ainda marejados, olhei para ele e sorri, sentindo uma paz que há muito tempo não sentia.
— Eu te amo, pai.