Lucas foi o motorista da noite. Ele tinha decidido não beber e foi de carro, argumentando que preferia ter a liberdade de voltar para casa mais cedo, caso não estivesse se sentindo bem. Porém, para minha surpresa – e satisfação –, ele ficou até o final da festa com a gente, aproveitando cada momento. Na volta, ele insistiu em me deixar em casa, já que Bernardo decidiu estender a noite com JP e um rapaz com quem ele tinha ficado. Eu não estava no clima de putaria para seguir com eles e, antes de me despedir, trocamos um beijo rápido e um sorriso cúmplice.
No caminho para casa, o silêncio confortável do carro foi preenchido pela nossa conversa. Lucas parecia pensativo, e logo que saímos das ruas movimentadas da balada, ele quebrou o silêncio.
– Interessante esse lance de namoro aberto entre você e o Bernardo... – Ele começou, lançando um olhar de curiosidade. – Não rola ciúmes?
Ri, imaginando como a nossa dinâmica podia parecer estranha para alguém que não estava acostumado.
– Ah, amigo, pior que não. No começo foi complicado, mas hoje é de boa.
Ele franziu a testa, como se tentasse entender.
– Não sei se eu teria estômago pra isso.
Dei uma risada mais alta.
– Nem eu achava que teria. Mas acaba que a gente vira cúmplice, sabe? Quando começamos a namorar, eu traía o Bernardo, e ele me traía. Era uma confusão, porque ele cobrava fidelidade de mim quando ele mesmo não era fiel. Brigamos muito por isso, até que resolvemos mudar tudo. Hoje, tá tranquilo. Ele deixou de ser sonso, e eu deixei de mentir. A gente fica com outras pessoas, às vezes com a mesma pessoa, e seguimos assim. O importante é que tudo fica às claras. Não escondemos nada um do outro.
Lucas me olhou com um misto de incredulidade e diversão enquanto manobrava o carro numa curva.
– Vocês gays são pervertidos. Essa é a verdade. – Ele soltou uma risada, tentando suavizar o tom da frase.
Sorri de canto e retruquei, piscando.
– Você não sabe o que está perdendo, meu amigo.
Ele balançou a cabeça, rindo, mas sem responder. O resto do trajeto seguiu com um clima leve, até que ele parou o carro em frente ao meu prédio. Antes de descer, agradeci pela carona e, com um gesto descontraído, toquei no ombro dele.
– Valeu pela companhia, Lucas. Você está voltando a ser o cara que eu conheci.
Ele sorriu, com um brilho no olhar que não via há tempos.
– E obrigado por me arrastar pra essa noite. Acho que eu estava precisando.
Enquanto o carro estava parado em frente ao meu prédio, o relógio já marcava quase 4h da manhã, mas parecia que tínhamos entrado em um universo paralelo onde o tempo simplesmente não existia. Começamos a conversar sobre um assunto qualquer, e, como sempre acontecia, um tema puxava outro.
Ora falávamos de futebol, ora de séries que gostávamos. Do nada, a conversa migrava para política, e, sem aviso, lá estávamos nós debatendo sobre mulheres, homens e tudo mais que surgisse. Nossos diálogos eram assim, intermináveis, como se estivéssemos desbravando uma enciclopédia que nunca acabava. O tempo passou num piscar de olhos, e, quando percebi, o céu já estava claro, e já eram sete da manhã.
Lucas olhou para o relógio no painel e soltou um bocejo.
– Porra, a gente amanheceu o dia? Melhor eu ir.
Sorri, mesmo sentindo um pequeno aperto no peito por aquela conversa estar chegando ao fim.
– Não quer dormir aqui em casa? Tem o quarto da minha mãe.
Ele balançou a cabeça, determinado.
– Não, não. Preciso ir pra casa. Vou sair com meu pai já já.
– Tá bom, então. Me avisa quando chegar, hein?
Nos despedimos com um abraço, um pouco mais demorado do que o habitual. Durante aquele gesto, o perfume dele invadiu meu nariz novamente, como se marcasse território no meu subconsciente. Aquele cheiro... era algo que eu sabia que jamais esqueceria.
Ainda trocamos um olhar rápido antes de eu descer do carro. Não havia nada demais no jeito que ele me olhou, mas, por um momento, parecia que havia algo ali. Algo que não tinha nome, mas que fazia meu peito aquecer de leve.
Subi para o apartamento, já com o corpo pedindo descanso, tomei um banho rápido e me joguei na cama. Antes de fechar os olhos, vi a notificação de uma mensagem no celular. Era do Lucas.
“Cheguei em casa. Valeu pela conversa, foi bom demais.”
Sorri e comecei a digitar uma resposta, e assim seguimos. Emendamos mais algumas mensagens que fluíram tão naturalmente quanto nossa conversa no carro. Quando olhei de novo para o relógio, já eram quase 9h. Exausto, minhas pálpebras pesaram, e finalmente apaguei, com um sorriso no rosto e a certeza de que aquela madrugada tinha sido especial.
Quando acordei, o relógio já marcava quase 15h. Apesar das horas de sono, ainda me sentia um pouco cansado, como se o peso da madrugada anterior ainda estivesse sobre mim. Peguei meu celular e fui direto conferir as mensagens acumuladas. Respondi Bernardo, que queria saber como eu estava. Depois, Lucas, com quem ainda trocava umas ideias sobre a noite passada. Também tinha uma mensagem do meu pai, perguntando sobre a semana, e outra do Caio, apenas para puxar assunto.
Domingo sempre foi um dia de calmaria pra mim, e, naquela tarde, eu havia combinado de passar o dia com minha irmã, Sofia. Ela faria o Enem na semana seguinte e estava um pouco tensa. Nada melhor do que um bom açaí e uma conversa para aliviar a pressão.
Nos sentamos numa mesinha ao ar livre, e enquanto nos refrescávamos com nossos açaís, o papo começou a fluir, como sempre acontecia entre nós.
– E então, já decidiu qual curso vai fazer? – perguntei, curioso.
Sofia suspirou, como quem carregava um segredo há algum tempo.
– Sim, mas o papai ainda não sabe. Nem a mamãe. Vou fazer jornalismo.
Fiquei em silêncio por um instante, processando a novidade. Depois, abri um sorriso.
– Eu acho a sua cara. Você vai se dar super bem. E acho que o pai vai te apoiar.
– Sim, também acho. Ainda mais que você é o filho preferido dele e faz medicina – disse ela, com aquele tom sarcástico que era sua marca registrada.
Soltei uma risada.
– Haha, deixa de ciúmes, maninha. Você sabe que o pai gosta mais de você do que de mim. Mas, enfim, não vamos discutir isso, né?
– Sim... menino, nem te contei o babado: quem me mandou mensagem no Insta essa semana foi o Lucas. Ele tá solteiro, né? Terminou com a tonta da Brenda.
Senti uma pontada de ciúmes, algo que não consegui evitar, mas disfarcei com um tom casual.
– Sim, terminaram. E respeita a Brenda, hein? Ela é minha amiga. Mas e aí? Saiu com o Lucas?
Sofia revirou os olhos, fingindo desdém.
– Não, não... Ele é um gato, mas sei lá. Só tinha graça quando ele namorava. A graça era ficar com ele namorando, não solteiro. Então nem prolonguei o papo.
Revirei os olhos, rindo.
– Você não presta, hein, irmã?
– Claro que não. Esse é meu jeitinho, você sabe – respondeu ela, rindo e se vangloriando.
Apesar das provocações, eu adorava passar o tempo com Sofia. A relação que tínhamos era especial. Sempre trocávamos confidências e segredos, e, por mais que às vezes eu sentisse ciúmes de seus namoradinhos, isso era parte do pacote de ser irmão.
Conforme o papo seguia, conversamos sobre a semana dela, as provas, e até sobre os dramas das redes sociais. Era nesses momentos que eu me sentia mais conectado com ela, lembrando que, independentemente de qualquer coisa, ela sempre seria minha melhor amiga.
Era quarta-feira, e eu estava na academia, terminando mais uma série de exercícios. Havia postado um story distraído, algo casual. Alguns minutos depois, meu celular vibrou com uma ligação de Lucas.
– Fala, gatão! Tá na academia, é? – ele perguntou com aquele tom descontraído que só ele tinha.
– Tô, sim. Vai vir?
– Não, não. Tô no futebol com os caras da faculdade. Tô sem carro hoje, vim de carona. Quer vir me buscar aqui, não?
Dei uma risada, aproveitando a deixa para provocar:
– Você tá todo suado e de short de futebol? Se sim, eu vou.
Ele riu do outro lado.
– Claro! Vou te mandar a localização. Não demora, hein?
– Só vou fazer uns minutinhos de cardio e já saio.
Fechei a ligação e terminei meu treino, tentando ignorar a pequena ansiedade que senti ao saber que ia vê-lo. Quando cheguei ao campo, Lucas estava parado na calçada, sem camisa, com as chuteiras nas mãos e um short de futebol preto. Ele estava suado do jogo, os cabelos bagunçados de uma forma que só adicionava ao charme dele. Eu podia tentar fingir, mas era impossível não reparar.
Assim que entrou no carro, abriu aquele sorriso que parecia iluminar tudo ao redor. Os dentes alinhados e brancos contrastavam com a pele clara e corada pelo esforço físico.
– E aí? Ganhou ou perdeu no jogo hoje? – perguntei, puxando assunto enquanto tentava manter a naturalidade.
– Ganhei, claro! Marquei dois gols ainda – respondeu com uma pontinha de orgulho.
– Muito que bem! E o que houve com o carro?
– Meu pai colocou na revisão. Só vou pegar amanhã.
– Tendi.
Ele me olhou de soslaio e agradeceu:
– Valeu pela carona.
– De nada. Sei que, se fosse o contrário, você faria o mesmo.
Ele riu.
– Haha, claro que não faria. Você nem merece – disse ele, me dando um tapinha na coxa.
– Ah, é? Não mereço? Bom saber!
– Tô brincando, lesado! Claro que você merece – disse ele, alisando minha cabeça com uma intimidade que me deixou sem reação por alguns segundos.
Chegamos à casa dele, e, como de costume, ficamos conversando por alguns minutos antes de nos despedirmos. Mas, naquele dia, a conversa não se estendeu tanto. Quando ele saiu do carro e entrou em casa, fiquei ali por um instante, sozinho com meus pensamentos.
Foi ali, naquele breve momento, que algo dentro de mim se mexeu de forma diferente. Eu sabia que estava ferrado. Algo havia mudado, e por mais que eu relutasse em admitir, já não podia mais negar o que sentia.
Por mais que eu evitasse, os detalhes começaram a se encaixar: o cheiro dele, o jeito como mexia no cabelo, o sorriso que parecia desarmar qualquer barreira, a forma casual e irresistível como ele me tocava – tudo nele parecia um convite para que eu me perdesse.
Enquanto dirigia de volta para casa, um pensamento começou a ecoar na minha mente. Eu estava começando a gostar de Lucas. E, pior, eu sabia que não havia como voltar atrás.