O Mochileiro #Quarta Parte

Na manhã seguinte acordei cedo. Presumi que o sol, manhoso, aparecia cortado pelo horizonte pois ainda fazia frio dentro da barraca. A noite me trouxe pensamentos que não me deixavam dormir decentemente. Não sou do tipo que me preocupo, mas as memórias do que Juca fizera noite passada estava orbitando minha cabeça como os planetas orbitam o manhoso sol. Sentia que precisava fazer algo quanto a isso ou ao menos aliviar os pensamentos buscando algo mais claro da parte dele. Antes disso, precisava reservar algum momento com o mar. Estava em dívida.
Arrumei o que tinha de ser arrumado dentro da minha casa de tecido, vesti um short curto e leve combinando com uma camiseta também folgada. Por baixo do short: Nada. Escovei os dentes e parti rumo ao mar. Atravessei parte da pequena vila de Caraíva, cumprimentei os pescadores que partem ao ofício logo cedo e enquanto cantarolava baixo uma composição de Dorival Caymmi, avistei o mar convidativo no final de um pequeno corredor de plantas de tons vivos e brincalhões. Por um segundo eu não pensava em Juca e muito menos sua aproximação de mim. Nesse momento a única coisa que preenchia minha memória era o amor que tinha pelo mar e o quão me sentia confortável com a brisa fria do amanhecer. Num riso frouxo, tirei a camisa e apressei meus passos. Sabia que o mar não estava para banhos naquele momento, mas nada me impedia de reinar as areias finas da praia possivelmente vazia. Senti o vento brincar com a leveza do tecido de meu short. O mesmo vento parecia subir por meu corpo e contornar minha cintura, provocando pela primeira vez um leve arrepio. Pousei a blusa sobre o ombro e terminei o corredor de plantas, possuindo agora a praia e a faixa de areia só para mim. Esbocei um sorriso vitorioso, como se acabasse de escalar a maior montanha do mundo ou travado uma guerra épica contra um reino distante. Suspirei ao tirar os chinelos e sentir o tapete frio feito de areia me acolher e inciei uma leve caminhada até o mar, sentindo mais forte a brisa fria. A mesma brisa brincava entre meus cabelos médios castanhos queimados de sol. Se não fosse minha pouca habilidade com as ondas, eu poderia me infiltrar num desses grupos de surfistas que encontramos saindo das praias no fim da tarde.
Quando enfim toquei o mar com os pés, finalmente acreditei que estava ali. Foi impossível segurar a sensação de realização. Eu queria, mais que todas as coisas, ter alguém para dividir o feito. Alguém para me ver bater no peito e gritar forte aos ventos.
- EU CHEGUEI AQUI!
- E parece querer acordar Iemanjá - disse a voz conhecida atrás de mim.
Me virei num pulo, dando alguns passos para trás.
Juca sorria, parecia se divertir com meu susto. Era prazeroso para ele me ver pular de medo e quase perder o equilíbrio do corpo. Não era um sorriso de maldade, preciso dizer. Era quase carinhoso. E como sempre convidativo. Após a onda de adrenalina consumir minha carne, apoiei as mãos nos joelhos e falei ainda de cabeça baixa.
- Então é isso que você faz no tempo livre? Assusta quem invade seu quintal? - Eu conclui a frase voltando a minha postura inicial.
- Eu admito que queria assustar. Mas quem acorda a rainha das águas assim tão cedo precisa de uma lição - disse tentando me convencer.
- Não. Você está sendo cretino. Eu poderia.. Poderia.. reagir violentamente.
- Você faz isso quando sorri - ele falou baixo. Parecia pensar alto demais.
Meu corpo pareceu estar paralisado. Só consegui olhar seu corpo contra o vento. Era um monumento inteiro. Era mais alto que eu. O cabelo mesmo curto era bagunçado pelo vento, a camiseta colada ao corpo mostrava seu peito definido e a barriga igualmente definida. Eu queria estar colado a sua pele agora, mas o vento o beijava por mim. Inevitavelmente dei alguns passos em sua direção, encurtando a distância entre nossos corpos acarinhados pela brisa. Eu mirava seus olhos quando vi os deles descer e mirar minha boca. Eu quase fiquei sem jeito ao perceber o caminho que o olhar dele fizera. Era certo: ele queria o mesmo que eu, eu poderia prever isso. Eu sabia que teria que reagir primeiro, ensaiava mentalmente quando fui interrompido por sua voz macia e bem calculada ao ordenar carinhosamente.
- Sorri pra mim.
Foi natural sorrir. Eu posso apostar que servia em meu rosto uma vermelhidão estranha. Era impossível alguém me deixar sem jeito.
Num segundo joguei minha camiseta e meu chinelo na areia, numa distância que a água não os tocassem e lancei um olhar desafiador para Juca enquanto caminhava até sentir a água nem morna e nem fria tocar meus joelhos.
- Vem!
- N-U-N-C-A! - ele soletrou cada letra com autoridade. - Jamais que eu entro nessa água aí.
- Você me mandou sorrir. Eu sorri. Você me deve isto. - Retruquei.
- Vamos trabalhar com isso agora? Vai jogar as coisas na minha cara?
- Não vou e nem posso. Olha minha posição, estou ocupando seu quintal.
Balançando a cabeça como se negasse algo foi tirando a blusa e jogando-a perto da minha. Tirou os chinelos e deixou ao lado dos meus e pensou alguns segundos em tirar o short. Não tirou. Forçou os braços cruzados sob o peito denotando frio enquanto falava e aos suspiros foi entrando no mar.
- Isso é por você ser convincente demais. E depois... Pelo sorriso, seu cretino!
Eu ri. Eu só poderia rir. Mas logo poderia sentir que o sorriso se transformou em uma expressão contemplativa. Eu me lembrei do quão bonito era Juca. Seu corpo parecia medido e perfeitamente esculpido. Não exibia músculos graciosos e trabalhados, mas tinha tudo no lugar e as linhas do seu corpo eram bem definidas. Principalmente aquelas famosas que descem pelo final da barriga, seguindo o caminho da virilha. Sua pele que outrora parecia ser clara, mostrava um bronzeado natural e os ombros descascados, denunciando sua vida praiana. Seus 26 anos se mostravam presente na composição dos pelos ralos e clarinhos que cobriam seu braços e levemente sua barriga. Confessei a mim mesmo que queria imaginar o que se escondia embaixo do seu short. Me peguei pensando em como seria o resto da composição de seu corpo. Como realmente eram suas coxas já que pareciam bem torneadas. Se eram cobertos por pelos mais grossos. Se eram lisas como seu peito. Eu estava totalmente perdido em minha odisseia imaginativa. Acordei com alguns respingos em meu rosto vindos da direção dele.
- Acorda. Você vive se perdendo. Dia desses eu sumo e deixo você só. Estou falando, é essa água fria. Está te petrificando.
- Não exagera. Nunca vi mar melhor - falei andando para trás, impedindo que ele me alcançasse, deixando a água ultrapassar minha cintura.
- Não prossiga. Iemanjá pode estar descontente por ter sido acordada.
Eu ri, sentindo meu corpo ser deliciosamente envolvido nos movimentos fracos das ondas.
- Não, ela está contente. Somos apenas nós dois e ela nesse mar. Ela não poderia estar mais contente - eu disse sentindo a água quase atingir meu peito. Parei e num pulo mergulhei, atravessando a pequena distância que me separava de Juca. Esperto, ele tratou de mergulhar na direção oposta a mim. Emergi e abri meus olhos, avistando Juca ainda mais distante. O cretino se muniu de um sorriso desafiador. Ele queria uma perseguição? Ele teria uma perseguição. Iniciei um nado rápido em sua direção. Ele gritou em meio aos risos nadando desgovernado, entrando assim no meu jogo.
- NÃO, NÃO, NÃO, NÃO.
Continuei nadando mais rápido, exigindo a mim mesmo que o alcançasse. Sem medir a distância, senti minhas mãos tocarem seus pés e ele, desesperado, jogava água em mim. Outrora tentava me bloquear com as mãos. Ele ria e eu adorava fazê-lo rir. Descobrira meu novo passa-tempo preferido. O alcancei de vez. Eu poderia ter feito qualquer coisa: empurrado, jogado seu corpo para mais distante, afundado sua cabeça na água. Poderia jogar água em seu rosto, como assim fizera comigo. Mas num ato totalmente involuntário eu o abracei. Lacei a lateral de seu corpo com meus braços e o puxei para mim enquanto reproduzia o som de algum animal esquisito. Mordi seu ombro com uma leveza despercebida e ele reagiu. Gargalhando, tentou se desvencilhar de meus braços ao mesmo tempo que colou sua mão em meu rosto, tentando me afastar dele. Fiz que ia morder seus dedos e mais esperto que eu, eu adotou um personagem para si. Apontou o dedo em meu rosto e falou em tom amistoso.
- Calminha, bicho esquisitão. Amigo! Amigo!
Fingi me acalmar e lhe dei uma expressão mais amigável.
- Calminha! Você é bonzinho. Não precisa machucar ninguém.
Eu posso jurar que quase fiz um bico. Eu posso jurar também que estava um tanto ridículo. Claramente ele riu de mim por um instante, mas logo adquiriu uma expressão calma e doce.
- Viu só.. Você é bonzinho. Muito bonzinho. - Ainda permitindo minhas mãos na lateral do seu corpo na altura do peito, ele ergueu sua mão direito e ajeitou as mechas de cabelo molhados que caiam sobre meu olho. Estremeci quando a mesma mão desceu pela lateral do meu rosto, passou por minha orelha e terminou com os dedos se arrastando por minha mandíbula. Seu olhar estava fixo no meu. Nossos rostos estavam próximos demais. Se me lembro bem conseguia sentir sua respiração. Eu caminhei meu olhar por seu rosto: dos seus olhos para seus lábios molhados e provavelmente salgados.
- No fundo é um completo mané. - Ele mirou meus olhos enquanto falava, piscou e afundou com força minha cabeça na água. Aproveitou a momento de deslize para sair correndo para a areia.
Ele me enganou. Não era possível. Ele soube usar da esperteza para se livrar de mim. Eu sabia que a brincadeira acabava ali, mas haveria uma vingança. E se haveria...
Já na areia ele exibia uma pose vitoriosa. Já via que era do tipo que entrava no jogo. Eu gosto disso. O sol se mostrava inteiro acima da linha do horizonte. Sem trocar muitas palavras, apenas fuzilando um ao outro com o olhar, nos munimos de nossas camisetas e chinelos e nos pusemos a fazer o caminho de volta pra casa. Ele insistia em apressar dois ou três passos, caminhando na minha frente. Aquele silêncio reinava novamente. Dessa vez eu não permitiria que ele tomasse conta. Interrompi.
- Um dia da caça..
Ainda caminhando ele me olhou, completando o ditado.
- Outro do caçador.
Rimos juntos. Seus ombros carregando gotículas de água balançaram com o riso.
Chegando na casinha amarela ele entrou apenas me lançando um olhar confortável. Eu sabia que ele estava sob o efeito do que fizera momentos antes, lá na praia, ao tocar meu rosto novamente. Eu sabia que ele poderia estar cheio de dúvidas quanto as suas ações e quanto a mim. Mas sabia também que eu poderia estar imaginando coisas demais. Evitei tomar alguma ação e pensei estar evitando um possível mal estar entre eu e um cara extremamente carinhoso comigo. Dando um basta aos pensamentos oportunos, troquei a roupa molhada por uma seca, peguei um pacote de biscoitos sequinhos que carregava comigo e decidi ir explorar a vila, deixando minha casa de tecido armada e bem arrumada.
As horas passaram depressa naquele dia. Visitei outra praia, conheci alguns pescadores, joguei futebol com umas crianças num campinho improvisado e fiz a alegria de uns senhores que serviam de espectadores. Aposto que eles riam por ver um garoto de 24 anos levando um banho de garotinhos franzinos. Almocei na vila mesmo. Comi num restaurante pequeno, mas bastante simpático. Conquistei a amizade da proprietária Dona Helena e não precisei pagar. "Foi uma cortesia a quem já caminhou demais na vida", ouvi de seus lábios. Ela admirou minha coragem.
O sol quase tocava o horizonte oeste quando me toquei do passar acelerado das horas. O dia descobrindo a vila tinha sido produtivo, mas eu precisava voltar. Sentia um misto de curiosidade ao encontrar Juca para analisar suas reações e sentia saudade. Sim, saudade. Uma tarde fora e eu já sentia falta do seu sorriso convidativo e confortável, do seu cheiro cítrico quando saía do banho e do amadeirado com o passar das horas.
Eu precisava voltar. Desta vez não somente para a casa amarela. Sentia que precisava voltar para Juca.

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Comentários


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haroldolemos Comentou em 07/03/2016

Bom demais...viajando aqui!

foto perfil usuario kralegal

kralegal Comentou em 04/03/2016

Tá lindo seu conto, continua logo!!!!




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Ficha do conto

Foto Perfil omochileiro
omochileiro

Nome do conto:
O Mochileiro #Quarta Parte

Codigo do conto:
79910

Categoria:
Gays

Data da Publicação:
03/03/2016

Quant.de Votos:
9

Quant.de Fotos:
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