- Demoramos?
Juca não precisou se apresentar. O casal sentado na mesa do bar de sempre estava presente na última vez que estivemos aqui. Eles sorriram comemorando sua chegada. Ainda de pé fiz um sinal para Juca de que iria ao balcão. Ele segurou seu braço, fazendo-me ficar mais próximo dele.
- Vocês conhecem o Caio. Ele estava aqui da última vez que vocês visitaram a vila.
O casal a minha frente mal reagiram. Sorriram obrigados. Eu tive vontade de sair dali imediatamente. Eu não era obrigado a interagir com eles. Numa conversa aleatória Juca havia me dito que os amigos de São Paulo costumavam dar uns pulos na Bahia, já que eles não tinham nenhuma ocupação a não ser gastar dinheiro. Ao menos estavam gastando com viagens.
Juca sentou e quase me ordenou a fazer o mesmo. Jesse, um moço inglês de beleza fora do padrão dos mortais se mostrou curioso quanto a minha proximidade com Juca. O danado parece um Deus que desceu do olimpo para brincar de nos encantar. Olhos azuis brilhantes, cabelo dourado e um pouco curtindo. A pele clara exibia um rosado divertido nas bochechas. Ele me lançou olhares desconfiados. Ainda mais quando, sentados, Juca fez questão de roçar seu ombro no meu. Clara, sua parceira, não ligou muito. No mínimo, por ser a melhor amiga de Juca, deveria saber de seus segredos. Evitei manter contato visual com os dois. Eles pareciam me julgar de alguma forma e eu não estava nem um pouco interessado nos tais julgamentos.
Enquanto eles conversavam sem a intenção de me colocar no meio do papo, vi a mesa se abarrotar de latas de cervejas. Eles riam alto e eu estava mais interessado em ver os rostos que passavam na rua. Fui interrompido por Juca.
- Não é?
- O que? – eu me mostrei um tanto desligado.
- Junior disse que você está indo embora – Clara se antecipou.
- Como.. digo.. Estou indo? Do que estão falando?
Juca mexia numa tampa de uma das garrafas de cabeça caixa enquanto falava.
- Você disse que estava indo embora. Disse num dia desses que bebemos além da conta.
- Eu... disse isso? – Minha voz falhava. Eu estava quase travado.
- Disse. E repetiu mais algumas vezes. – Juca me olhou, retraído. – Você quer partir?
Eu não poderia e nem queria falar mais nada. Não na frente de seus amigos. Não queria nem estar ali na presença deles. Tentei pronunciar, em vão, alguma palavra. Mirando seus olhos, visivelmente tristes, só consegui sussurrar um “desculpa” desanimado. Para não pesar o clima e deixar seus amigos deslocados, ele esboçou um sorriso no canto dos lábios e tornou tomar mais um gole da sua cerveja.
As horas se arrastaram. A conversa já não estava tão animada, mas todos fingíamos bem. Apagamos o climinha em minutos e eu até fingia algumas risadas. Quando chegamos na casa amarela Juca não falou muito. Não me evitava, mas não era o mesmo. Ele deitou primeiro e eu fiquei perambulando pela casa. De forma automática me vi juntando alguns pertences espalhados e assustei quando vi que já pensava em pegar minha mochila. Me desfiz dos pensamentos, lavei o rosto e fui deitar. Ele estava acordado, é claro.
- Demorou.
- Eu estava na sala... mexia num negócio.
- Esse negócio já é a mochila?
- Não. Eram coisas aleatórias.
- Vem, deita.
Tirei minha roupa e fiquei só com um short que vestia por baixo da calça. Deitei e num segundo ele estava com a cabeça apoiada sobre meu peito e as pernas aninhado-se as minhas.
- Eu sei que você vai embora. Não sou eu quem ainda vai te segurar. – Ele falava com a calma e o cuidado de sempre.
- Eu sou um bicho selvagem. Eu sou livre, ainda não aprendi a pousar. Eu quero você, é claro, mas antes eu quero o mundo inteiro.
- Não sei se posso te dar o mundo inteiro – ele não mais parecia desapontado. Falava com o tom de quem entendia o que estava acontecendo e aceitava tal situação.
- Você é um mundo inteiro a ser descoberto. Mas eu não terminei a jornada que iniciei.
- Então faremos como nos filmes hollywoodianos? – ele ergueu seu rosto para me olhar.
- Como?
- Você vai, faz o que tem que fazer, vive o que tem pra viver, e volta. Estou acostumado com esperas. – Ele ensaiou um sorriso. Dessa vez foi real.
- E eu acostumado com partidas.
Ele subiu um pouco seu corpo e tocou meus lábios com os seus. Ele propôs um beijo calmo, quente e confortável. Nossas línguas seguiam um ritmo tão suave que pareciam dançar balé. Com o beijo ele dizia tudo que queria dizer mas não conseguia colocar em palavras. Entendi que eu poderia partir e deixei claro que voltaria. Seu hálito morno que invadia minha boca junto de sua saliva era a sensação mais gostosa que eu experimentara. Eu voltaria. Com certeza um dia eu voltaria. Dormimos aninhados. Ele dormiu sobre meu peito com nossas pernas entrelaçadas. Por madrugada a dentro eu grava em mim a sensação de acariciar sua pele macia jamais tocada por outro homem da forma que eu o tocava.
Acordei primeiro. O sol ensaiava estender os raios pelo jardim lá fora quando eu preparava minha mochila. Não carregava muita coisa na viagem, apenas umas roupas surradas e sem muito estilo, um saco de dormir e a barraca sempre amarrada a mochila cargueira. E os demais itens básicos para a higiene pessoal. Juca levantou e evitava olhar para as coisas arrumadas. Eu pretendia sair logo no começo da tarde. Tinha que partir para Porto Seguro ainda naquele dia, depois voltar para Salvador e planejar minha partida para Sergipe. Havia muita coisa para conquistar enquanto subia pelo litoral brasileiro.
Juca ficou de atualizar algumas músicas para mim enquanto eu ia até o pequeno mercadinho comprar alguns biscoitos e mantimentos que carrego comigo na mochila. Avisei que eu poderia demorar, visto que eu pretendia dar um pulo no mar.
Eu evitava ao máximo pensar nele nesse momento. Eu voltaria, mas naquele momento eu precisava atender ao chamado do mundo. Eu tinha começado algo e precisava terminar.
Ao retornar não encontrei Juca. Eu sabia que ele evitaria me ver sair. Eu poderia prever isso. Terminei de arrumar a mochila, caminhei até o quarto dele, borrifei seu perfume caro em meu pescoço e sorrindo, deixei o compartimento. Sobre a mesa o até logo escrito num papel amassado.
“Tranque a casa. Deixe a chave naquele vaso vazio no lado direito da porta. Não esqueça de tampá-lo. Não demore a voltar, pois juro que já sinto saudades. Te espero.” Tinha até um coração deformado desenhando no canto do bilhete. Guardei o papel amassado num dos bolsos da mochila.
Continuava fotografando na memória cada pequeno centímetro que eu percorria para chegar ao rio, o mesmo que era a porta de entrada da vila. Era preciso atravessá-lo de canoa e eu adorava isso. Eu sentiria saudades desse paraíso escondido no Brasil, mas eu prometi que não demoraria. Eu estava determinado a cumprir essa promessa.
Chegando na margem do rio avistei os demais mochileiros e suas mochilas gigantescas ancoradas nas costas. Eles também esperavam por canoas para fazer a travessia. Um deles me chamou atenção. O desajeitado da turma. Pareceu um tanto deslocado e desconfortável. Me aproximei e obviamente alguns se voltaram para me olhar. O atrapalhado me olhou sorrindo. Era Juca e seu sorriso cínico.
- Porque demorou tanto? Já estava desistindo.
Eu não conseguia falar. Nem conseguia andar. Ele ainda exibia o sorriso brincalhão e convidativo, o sorriso que eu adorava. Não demorei e o beijei rápido ainda surpreso, não me importando com quem estava ao redor.
- O que é isso?
- Isso o quê? Você precisa ser específico, Caio. – Ele mantinha a postura natural.
- Não seja cínico. Pra quê essa mochila? – Eu estava realmente surpreso.
- Ah, isso! Estou indo pra Sergipe. Você vem?
Eu não poderia acreditar que ele largaria tudo isso para ir viver comigo na estrada. Ele já fizera uma vez ao sair de São Paulo, mas jamais imaginaria que estaria disposto a se lançar pelo mundo.
Em meio aos pensamentos novamente o beijei. Ele continuava sorrindo enquanto eu falava.
- Eu vou. Ou melhor, você vem comigo. Não acredito nisso!
- Vai ter me que suportar por mais um tempo. Aliás, por todo o tempo que tivermos de vida – Ele falou com calma.
- E por todo o mundo – eu disse selando nossos lábios com minhas mãos pousadas em sua cintura, puxando-o pra mim com cuidado.
- Por todo o mundo! – ele repetiu sussurrando em meus lábios, matando a saudade que eu já sentia de seu hálito fresco.
Quando terminei de digitar o último ponto, Juca me surpreendeu beijando meu pescoço. Ele colocou agora mesmo dois pães com queijo sobre a mesa. Estamos em Natal, Rio Grande do Norte. Aqui faz um calor absurdo. Uso o computador de um rapaz muito simpático que conheci aqui no hostel onde estamos hospedados. Juca está de acordo com cada palavra que escrevi. Ele agora está sorrindo para mim do outro lado da mesa. Aquele sorriso convidativo que vocês sabem que ele tem. Deve imaginar que falo dele. Mas se me permitem, o pão ta esfriado e daqui a pouco vou mergulhar com golfinhos. Quem sabe eu volto para contar algo. Quem sabe. Estamos na estrada sem estruturas, sem casa e sem planos para o futuro. Mas como ele disse dias atrás “temos um ao outro e o mundo inteiro sorrindo pra nós.” Eu só posso concordar, não é?