Foi assim que eu passei grande parte daquele dia.
Não tive mais notícias. Eu não me importava mais com nada.
Foi então que a Marília veio conversar comigo:
- Renato... Renato!
- Oi.
- A gente tem uma promessa pra pagar. A gente prometeu, lembra? - ela disse entre gemidos abafados.
Eu não conseguia entender do que ela tava falando. Foi então que eu tive um flash na minha mente, no qual eu vi o Carlos rindo e nos fazendo prometer que se ele morresse primeiro, nós dois íamos tocar "Stop Crying Your Heart Out" no seu enterro.
A lembrança daquela brincadeira parecia um filme antigo retratando uma outra vida. A quanto tempo nós três tínhamos feito essa promessa...
Eu olhei pra Marília e disse:
- Eu não sei se eu posso. Eu ainda não tinha nem pensado sobre o enterro. Eu não... - eu nunca terminei essa frase porque as lágrimas empalaram a minha voz.
-Deixa que eu cuido de tudo tá! Eu vou falar com os meninos... Vai ser a nossa... A nossa última homenagem a ele.
Eu concordei com a cabeça.
Ela saiu do quarto e eu fiquei sozinho de novo, mas dessa vez não consegui voltar para o meu estado de torpor interior. A palavra enterro me trouxe para a realidade bruscamente. Em pouco tempo nós estaríamos enterrando o corpo do meu namorado, do meu melhor amigo e confidente.
E como estava a família dele? Eu precisava falar com o pai dele. Meu Deus! Eles deviam estar sofrendo como eu, ou muito mais...
Como minha vida pode mudar desse jeito em tão pouco tempo! Há algumas horas eu estava nos braços dele e agora ele havia partido; partido para sempre!
(...)
O resto daquele dia se passou sem que eu me recorde de muita coisa.
Tenho apenas um tufão de ideias. Eu achei que haveria velório à noite, mas o Instituo Médico Legal (IML) ainda não havia liberado o corpo dele.
No dia seguinte foi preciso que eu fosse até a delegacia prestar depoimento sobre o que havia acontecido e o porquê de estarmos lá tão cedo.
Foi horrível falar disso para estranhos e ver na cara deles o preconceito estampado.
A história de que nós dois estávamos namorando quando ele foi assassinado caiu na boca do povo e todo mundo que não sabia, ficou sabendo da nossa homossexualidade, da pior forma possível.
Vocês não conseguem imaginar como foi terrível ser chamado de viadinho e bicha por desconhecidos que moravam perto de casa.
Cheguei a ouvir de um colega da escola que "foi bem feito... Menos uma bicha no mundo"
Eu parti pra cima dele... E foi uma confusão...
As pessoas são muito hipócritas.
Todo mundo sabia disso, mas esperam pra te atingir quando você está mais frágil.
No final desse dia o IML liberou o corpo para o velório.
O Carlos sempre acreditou em Deus, mas nunca teve religião.
O pai dele era católico não praticante e a mãe estava frequentando um templo evangélico nos últimos meses.
Ela pediu para o pastor para que o velório fosse feito lá, mas ele se recusou a velar o corpo de um homossexual na igreja dele.
Até hoje eu não olho na cara desse pastor.
É muito fácil falar do amor ao próximo por falar, mas na primeira oportunidade de praticar a caridade e o amor, ele foi preconceituoso. Pobre espírito infeliz que vive na ignorância...
Foi a nossa escola que ofereceu o espaço para o velório.
Eu não queria ir. Não queria sair de casa e encarar as pessoas. Não queria ver a dor nos olhos do pai do Carlos... Mas eu precisava ir. Eu devia isso a ele.
Eu precisava dar forças à família dele. Uma força que eu não tinha, mas mesmo assim eu precisava... E havia a promessa que eu e a Marília precisávamos pagar.
A última homenagem dos seus dois melhores amigos!
O pátio interno da escola estava cheio de amigos, parentes, vizinhos e curiosos.
Eu não tive coragem de me aproximar da urna... Doeria demais.
Nunca vou esquecer do olhar do pai dele.
Ele olhava para o vazio... Era apenas a casca de um homem. O filho mais velho segurava o ombro do pai com um aperto firme. O sofrimento também era visível no olhar dele.
A mãe foi quem mais me surpreendeu.
Ela deve ser uma das mulheres mais fortes que já vi na vida, porque transformou a própria dor em forças. Força que ela dava para o marido e o outro filho.
Ela me abraçou com muito carinho e me agradeceu por ter sido tão próximo ao filho dela.
Esse agradecimento tirou um grande peso das minhas costas.
Achei que ela fosse me culpar pela morte dele.
Eu me sentia culpado e entenderia se ela me culpasse, mas, ao contrário do que eu imaginei, ela pediu para que eu não me sentisse assim.
O irmão dele me disse uma coisa muito legal:
- Renato... Não importa o que as pessoas estejam dizendo por aí. Ele te amava... E isso é o mais importante!
O pai dele me abraçou e nós choramos um nos ombros do outro.
As horas naquele velório se arrastavam e a cada segundo eu me esforçava para desviar meu olhar da urna.
Foi então que próximo do amanhecer... A hora do dia que ele mais gostava... A Marília me chamou para cumprir a nossa promessa.
Em um canto do pátio os meninos da banda haviam armado tudo para que eu cantasse.
Nunca foi tão difícil cantar... Mas eu precisava. Era desejo do Carlos que os seus dois melhores amigos tocassem e cantassem “Stop Crying Your Heart Out – Oasis” no momento da despedida .
https://www.youtube.com/watch?v=6QyVil0dwhk
Stop Crying Your Heart Out
Faça Seu Coração Parar De Chorar - Tradução
“Segure-se firme!
Segure-se firme!
Não tenha medo
Você nunca mudará o que aconteceu e passou
Talvez seu sorriso (talvez seu sorriso)
Brilhe (brilhe)
Não tenha medo (não tenha medo)
Seu destino pode mantê-lo aquecido
Porque todas as estrelas
Estão desaparecendo
Apenas tente não se preocupar
Você as verá algum dia
Pegue o que você precisa
E siga seu caminho
E faça seu coração parar de chorar
Levante (levante)
Venha (venha)
Por que você está assustado? (Não estou assustado)
Você nunca mudará o que aconteceu e passou
Porque todas as estrelas
Estão desaparecendo
Apenas tente não se preocupar
Você as verá algum dia
Pegue o que você precisa
E siga seu caminho
E faça seu coração parar de chorar
Nós somos todas as estrelas
Nós estamos desaparecendo
Apenas tente não se preocupar
Você nos verá algum dia
Apenas pegue o necessário
E siga seu caminho
E faça seu coração parar de chorar
Faça seu coração parar de chorar (3X)”
O som estava mexendo comigo.
Comecei a lembrar da primeira vez que conversei com ele... Sobre o time de futsal.
Lembrei da primeira tarde sob a árvore das Luzes.
Lembrei do rosto sério dele pedindo para eu não brincar com a Marília.
Ele preocupado comigo por causa do Alex. As aulas de física. As partidas de futebol na chuva com os amigos...
As lágrimas começaram a escorrer do meu rosto enquanto o refrão da música se aproximava.
Era o meu coração ferido querendo acreditar nas palavras daquela canção...
"o destino ia me manter aquecido... Um dia meu sorriso ia voltar a brilhar.”
Eu queria acreditar nisso.
Ele era a luz das estrelas para mim...
Lembrei do nosso primeiro beijo... E do soco que atrapalhou tudo.
Da primeira transa.
Do jeito dele tentando me seduzir. O sorriso lindo.
Lembrei dos olhos castanhos cor de mel me encarando sempre que eu errava um cálculo de física.
Me amando...
O olhar dele enquanto fazia amor comigo... Olhando no fundo da minha alma...
Eu queria acreditar na última canção que ele pediu pra mim... Um dia eu voltaria a ver a luz das estrelas...
As lágrimas escorriam pelo meu rosto e as lembranças fluíam da minha mente.
Cada loucura... Na fazenda... O por do sol... O nascer do sol... Os ipês... a árvore das Luzes...
Eu não podia mudar o que passou, mas eu não mudaria nada.
Cada momento com ele foi mágico, mas ele partiu...
E era isso que a última canção dele pedia...
Faça seu coração parar de chorar... Siga em frente!
Ele tinha pensado em tudo.
Até em como me fazer sentir melhor em um momento desse...
Essa música não era para homenagear a ele... Era pra consolar os amigos que ficaram...
Definitivamente ele era a pessoa mais maravilhosa e sensível que eu conheci...
O poder da música começou a consolar meu coração e quando eu terminei, eu chorava não mais de tristeza ou revolta... Chorava por saudade. Saudade de tudo de bom que a gente tinha vivido.
Eu chorava pelos motivos certos para chorar.
Quando terminei as pessoas aplaudiram não a mim ou à banda, mas ao Carlos... Esse amigo incrível que pensou em tudo!
Eu saí detrás do microfone sentindo meu amor por ele pulsar no meu peito.
Foi então que caminhei até a urna.
Ali estava o corpo dele, vestido em um terno preto; a face serena; como a de uma criança que descansa despreocupada. As mãos cruzadas sobre o peito cercado de flores, emitindo o perfume adocicado que não era o dele.
Alí estava o corpo do garoto que eu tanto amei... Mas era apenas um corpo.
Eu tive certeza, mesmo sem saber o porquê... Que ele não estava ali.
Um dia eu veria as estrelas brilharem de novo...
Ele partiu, mas um dia nós dois iríamos nos encontrar...
Me afastei da urna tranquilo...
Naquele dia, eu e os amigos enterraríamos apenas um corpo, não o Carlos...
Não o meu grande amor!
As horas seguintes se passaram sem que eu registrasse muitas coisas.
Depois da música, meu coração pulsava dentro de mim com um amor maior do que tudo. Um amor que me dava certeza de aquele não era o último adeus...
Ele havia prometido, minutos antes de morrer, que sempre estaria comigo e era ali dentro do meu coração que ele estava.
Às seis da manhã um cortejo de carros saiu da escola seguindo um carro fúnebre.
Nunca vou me esquecer daquela manhã. Ao contrário dos enterros que a gente vê na TV, não estava chovendo; o céu estava limpo e com um azul claro celestial.
Quando chegamos ao cemitério, os funcionários colocaram a urna em um daqueles carros puxados por alças, onde os familiares podem segurar e guiar a urna até o túmulo.
Eu e a Marília andávamos lado a lado. Aquele era um cemitério particular, que ficava meio afastado do centro da cidade. Era um lugar amplo e florido.
Ali não havia estátuas de anjos ou sepulturas imponentes e malsoleus.
Não. Ali só se identificava os túmulos por uma placa de mármore com o nome das pessoas ali sepultadas.
Era um lugar tranquilo e sentir a brisa fresca da manhã naquele lugar me acalmou.
Quando chegamos ao local do sepultamento a cova já estava aberta e os funcionários do local encaixaram a urna em uma espécie de aparelho que desce o caixão até o fundo da cova.
Agora faltava muito pouco.
Após algumas palavras emocionadas do seu pai e do seu irmão, eles começaram a descer a urna.
E todos se aproximaram para jogar flores.
Eu joguei sobre a urna dele, não uma, mas várias rosas.
A Marília fez o mesmo.
Quando a primeira pá de terra foi jogada, eu senti que meu coração se quebrou ao meio.
Uma dor que não era humana me invadiu e eu não contive as lágrimas que escorriam de forma descontrolada pelo meu rosto.
Eu solucei de dor... E então percebi que todos ao meu redor choravam também.
O coveiro não parou... Pá após pá de terra... E em poucos minutos estava tudo acabado.
Foi nessa hora que senti uma mão apertando meu ombro e uma voz familiar me disse:
- Há quem diga que assim acaba o homem.
Eu me virei ao ouvir isso e vi de quem era a voz.
O Senhor Erasmo, o dono da Árvore das Luzes encontrava-se parado atrás de mim com um olhar triste... E repetiu:
- Há quem acredite que assim acaba o homem! - e continuou. - Você que conheceu o Carlos tão bem, consegue acreditar que esse foi o fim do seu amigo?
- Não. - eu respondi, tocado pelas palavras dele.
- Pois muito bem, meu filho! Então tenha fé e não acredite que esse foi um adeus!
Eu não consegui falar, só funguei um pouco e ele me deu um sorriso triste e se afastou.
Foi então que a Marília, que estava do meu lado, disse com a voz chorosa:
- Muito delicado da parte dele te dizer algo assim, numa hora dessas, né?
- Sim, muito delicado.
Outras pessoas vieram me cumprimentar e cumprimentar a família do Carlos... E pouco a pouco o cemitério foi se esvaziando até só restarmos ali, eu a Marília e os pais dele.
Minha mãe estava um pouco afastada, esperando que eu estivesse pronto para ir embora.
A mãe dele me deu um último abraço e me convidou para ir.
Eu disse que queria ficar mais um pouco e ela concordou com a cabeça e se afastou junto com o seu marido.
Eu olhei para a Marília e ela entendeu que eu queria ficar uns minutinhos a sós. E com um último olhar para o monte de rosas que cobria o túmulo, disse:
- Seu idiota! Vou sentir muitas saudades.
E se desfazendo em lágrimas ela se afastou e foi ficar perto da minha mãe.
Foi nesse momento que eu me ajoelhei ao lado da placa de mármore e murmurei um trecho da música:
“Cause All of the Stars
Are fading away
Just try not to worry
You'll see them some day
Take what you need
And be on your way
And stop crying your heart out.”
- Carlos, eu vou encarar isso como uma promessa. Eu não sei quando, eu não sei onde, eu não sei em que dimensão, mas nós vamos voltar a nos encontrar! E quando isso acontecer, nem mesmo a morte poderá nos separar de novo.
Eu chorei copiosamente por uns dois minutos e segurei com força a terra remexida do túmulo.
- Até lá eu prometo que vou fazer meu coração parar de chorar! E eu te juro que vou ser feliz porque eu te devo isso...
Eu parei de falar e olhei para o céu azul.
Fechei os olhos e senti uma brisa me envolver... E olhando para o céu eu continuei:
- É estranho olhar para o céu sem você do meu lado. A gente sempre fazia isso quando fazíamos planos, quando sonhávamos. Eu te prometo que vou realizar nossos sonhos.
Beijei a última rosa que eu guardei para esse momento e a coloquei ao lado da placa de mármore com o nome dele.
- Até logo, meu amor!
E assim eu me afastei do seu túmulo. Um lugar no qual eu nunca retornei.
Em todos esses anos eu nunca voltei até aquele cemitério, porque, para mim, não é lá que ele está.
Nesse exato momento, enquanto escrevo essas palavras e limpo algumas lágrimas que molham meu rosto, eu o sinto... O sinto totalmente vivo dentro de mim...