_Para com isso, Alice.
Eu havia acabado de lhe contar sobre o interesse de Pedro nela.
_Ai... Ai..._ disse tentando recuperar o fôlego entre uma risada e outra.
_Isso é cruel. Ele pareceu gostar mesmo de você.
_Pois sinto muito por ele, não vai rolar.
_Eu sei que você acha ele meio bobo...
_Bobo? Tente babaca, idiota, bossal e poderia continuar com nesta linha por toda a tarde. Eu tenho nojo de pessoas como ele.
_Não é pra tanto, Alice.
_É sim. Você que se ilude pensando que ele é uma boa pessoa no fundo, porque isso aliviaria o resto dos defeitos. Aliás, você é meio idiota também de ficar aqui defendendo ele sabendo que se ele descobrisse sobre você, nunca mais olharia na sua cara. Mais: você também é meio babaca por rir das babaquices que ele fala.
_Ok._ disse me cansando da discussão _Tá dado o recado. Não vai rolar nada.
_Nem em um milhão de anos!_ falou rindo.
_Certo._ suspirei _E como anda os preparativos da festa pra amanhã?
_Vai ficar ótimo!_ respondeu já toda empolgada _Eu e sua mãe tivemos várias ideias de temas e...
_Temas?!_ perguntei assustado _ Ah, não... Onde eu estava com a cabeça quando deixei vocês duas planejarem essa festa?
_Quer terminar de me ouvir? Obrigada. Então, tivemos várias idéias de temas, mas como nenhum pareceu com você, decidimos fazer algo mais normal mesmo.
_Ufa...
_Mas é lógico que vai estar tudo muito bem decorado.
_Ixi...
_Para de ser negativo!_ falou me dando um tapa no braço.
_Mas o síndico deixou você decorarem o salão de festa? Ele é chato com essas coisas.
_Salão de festas? Do seu prédio?_ ela falou e virou a cabeça para trás numa gargalhada.
_O que tem?_ perguntei perdido.
_Meu bem, sua mãe alugou um clube na orla da lagoa.
_O QUE?!
As pessoas em volta nos olharam assustadas com meu grito. Estávamos no meio da lanchonete da faculdade.
Para de ser tão escandaloso.
_Meu Deus! Eu só queria alguma coisa discreta, só um churrasco pro pessoal mais íntimo.
_Mas nem deu tanta gente assim, umas duzentas pessoas...
_Duzentas?! Eu nem acho que conheça tanta gente assim!
_Ah, amigos dos seus pais e dos seus irmãos. Sua mãe não está pra brincadeira quando quer fazer uma festa.
Balancei a cabeça negativamente tentando entender a grande roubada que tinha me metido quando concordei em deixas as duas trabalharem juntas.
_A impressão que dá é que vai ser uma coisa muito exagerada, mas não. Sua mãe não alugou o clube todo, ou o salão pra fazer algo muito formal. Só a área da piscina e da churrasqueira. E vai ser durante o dia, então vai ser tudo bem informal. E afinal de contas, você está fazendo dezoito anos, meu querido, tem que se comemorar.
Ainda não sabia bem o que esperar daquela festa...
[...]
Quando sábado chegou, eu estava uma pilha de nervos. Tinha tanta coisa acontecendo. Eu teria que enfrentar uma festa muito maior do que eu imaginava inicialmente, eu teria que ser o centro das atenções (o que eu odeio), teria que falar a Pedro que ele não tinha nenhuma chance com Alice e teria que transar com Taís. Esse último item da lista não devia me assustar tanto, mas assustava mais do que os outros. Se eu pretendia levar uma vida heterossexual, eu teria que me acostumar a transar com mulheres. Logicamente Taís não viria a ser minha namorada ou, menos ainda, minha esposa, mas eu tinha que começar de algum lugar. Aliás, que mal faria experimentar? Se eu gostasse, era lucro! Apesar de eu pensar assim, eu ainda sentia um medo tremendo do que aconteceria. Até pensei em beber para a coisa fluir com mais facilidade, mas desisti da idéia quando pensei na possibilidade das coisas saírem do controle como da última vez que bebi e eu acabar me ferrando.
Fui com meus pais e meus irmãos mais novos mais cedo para o clube. Realmente estava tudo muito bem decorado com balões, faixas e forros de mesa em diferentes tons de azuis. Fiquei mais aliviado ao constatar que não havia grandes exageros na decoração como eu esperava vindo da minha mãe. Logo os primeiros convidados foram chegando, a maioria eram tios, primos e amigos dos meus pais. Da minha turma, o primeiro a chegar foi Pedro, que trouxe mais quatro colegas nossos em seu carro. Todos me desejaram parabéns e se sentaram numa mesa bem grande que tinha reservado para minha turma da faculdade. Mal os deixei lá e Pedro já veio ao meu encontro me puxando para um canto.
_O que foi?_ perguntei. Ele parecia aflito.
_Você falou com a Alice?
Eu nem tive tempo de preparar um discurso. Eu teria que falar com ele sem rodeios. E pelo jeito que ele parecia aflito, acho que eu tinha grandes chances de estar o machucando.
_Falei...
_E?
Abaixei a cabeça e suspirei pensando no que falar, mas nem foi preciso, ele entendeu.
_Ela disse não, né?_ ela parecia estar forçando a voz para mantê-la indiferente.
_É, ela disse não. Desculpa.
_Não, que isso?_ falou fingindo (mal) que estava aceitando bem o fora _O que que a gente pode fazer, né? Vamos partir pra próxima. Aqui mesmo, vai chover mulher mais tarde.
_É._ era melhor fingir que ele estava atuando bem _Com certeza. Não era pra ser.
_E o que ela falou exatamente?
Ele estava ferido e não ia superar aquilo fácil.
_Pedro...
_O que? Pode falar, eu agüento, cara. Você acha que nunca levei um fora na vida? Só quero saber aonde posso melhorar.
_Deixa pra lá, Pedro.
_Por que é tão ruim assim? Agora fiquei curioso.
Ele realmente não ia desistir de saber de tudo, então fui obrigado a falar.
_Ela te acha idiota.
Ele ficou me olhando por um tempo analisando o que eu tinha dito. Então começou a rir.
_Fala sério!
_Estou falando sério. Ela te acha idiota.
_Idiota como?_ ele foi ficando sem graça aos poucos.
_Sei lá, Pedro. Ela não gosta das brincadeiras que você faz, ela acha tudo muito infantil. Alice não é dessas meninas que se impressionam com músculos bem desenvolvidos ou carro do ano. Ela se interessa pelo o que o cara tem a dizer.
Ele ficou pensativo, depois, claramente envergonhado.
_Obrigado..._ falou _Mais alguma coisa?
Ele perguntou brincando, mas no momento que falou isso eu me lembrei de como ela abominava sua homofobia. Eu não tinha intenção de lhe contar isso, era andar muito perto da beirada do penhasco, mas meus poucos segundos de hesitação foram o bastante para ele perceber que tinha mais coisa.
_O que mais ela falou, Bernardo?
_O que vai adiantar isso, Pedro? Ela já disse não. Levante a cabeça e siga adiante.
_Agora que quero saber._ falou firme e me encarando
Cocei a cabeça tentando decidir sobre o que fazer. Eu não trabalhava muito bem sobre pressão, então acabei soltando a informação por não conseguir pensar numa desculpa melhor.
_Ela acha que você é homofóbico, Pedro.
Fechei os olhos e me arrependi de ter falado. Eu estava muito perto de me entregar.
_O que?
_Você ouviu bem. Ela te acha homofóbico, que você detesta gays.
_E o que isso tem a ver?_ (perceberam que ele não negou?)
_Para Alice, isso diz muito a respeito da sua personalidade._ já que estava me ariscando tanto, decide chutar o balde e ir mais além _Talvez por ela ter muitos amigos gays, como me contou. Mas principalmente porque, para ela, isso te torna uma pessoa horrível, uma pessoa com a qual ela nunca se envolveria. Acho até que essa a principal razão para ela ter dito não.
Ele ficou me olhando com uma expressão de incredulidade no rosto. Ele realmente não estava esperando por aquilo. Depois a incredulidade se transformou em raiva.
_E como posso gostar disso?_ falou num misto de raiva e nojo _Não vê o que aquele viado fez com você naquele dia?
_Eu realmente não quero discutir isso no dia do meu aniversário._ falei tentando me manter impassível, mas tremendo por dentro.
_Tem como gostar disso? Tem?
_Não vou entrar nessa discussão. Não interessa o que eu penso sobre o assunto. Interessa a sua opinião e a dela, e as duas são conflitantes._ decidi terminar aquela discussão antes que eu acabasse me ferrando pra valer _Olha, Pedro. As coisas não vão mudar, deixa tudo assim. Ela disse não? Paciência, agora é seguir em frente. Agora, deixa eu ir lá porque tem convidados chegando.
Pedro ficou olhando pro nada enquanto eu passava por ele de volta para a festa. Mas ele me chamou:
_Bernardo?
_Sim?_ me virei de volta para ele.
_E se ela acreditasse que eu não sou nada disso?
_Como assim?
_E se ela acreditasse que se enganou, que eu não odeio viados, que não sou infantil, nem nada disso?
Ele não me olhava, ele olhava pra todo lugar, como se estivesse falando consigo mesmo.
_Pedro..._ aquilo ia acabar mal.
_Mas é cara! Ela ia me dar uma chance, não ia?_ agora ele me olhava.
_Alice é mais esperta. Não acreditaria que se enganou assim, mesmo se você passasse a agir totalmente diferente.
_Mas você poderia ajudá-la a acreditar...
_Não, Pedro, isso não vai acontecer. Não vou enganá-la desse jeito, ela me odiaria.
Já estava me preparando para ir embora, mas ele me segurou pelo braço.
_Por favor, Bernardo._ ele implorou e tinha um brilho estranho nos seus olhos, brilho esse que reconheci na hora.
_Você está apaixonado por ela, não está?
Ele continuou me olhando com aquele brilho nos olhos. Ele não disse sim, mas tampouco negou que estivesse apaixonado por Alice. Eu não sabia bem o que fazer. Despedaçar o coração de Pedro ou aceitar participar de uma farsa traindo Alice? Por outro lado, se Alice abaixasse a guarda por um instante e deixasse Pedro mostrar seu melhor lado, ela poderia gostar dele também, não? Eu gostava dele, aprendi a ver seu lado bom. E de um jeito estranho, eles combinavam, se completavam. Eu poderia entrar no jogo dele e ela me agradeceria mais tarde... Os fins justificam os meios? Acho que justificam, pelo menos nesse caso. Eu achava que ninguém poderia se ferir com um pouquinho de manipulação. Ledo engano...
_Ok, eu vou te ajudar.
_Obrigado, cara!_ falou me puxando pra um abraço que chegou a tirar meus pés do chão _Eu não sei como te agradecer!
_Bom, a gente combina como vai fazer isso depois, hoje não tô com cabeça. Mas uma coisa é certa, ela nunca acreditaria que se enganou com você. Porém, ela acreditaria se pensasse que você está mudando aos poucos. Mudando por ela.
_Você acha?
_Acho que é sua melhor chance.
_Então, tá, vamos fazer assim!_ ele parecia uma criança que tinha acabado de ganhar um presente de natal tamanho era sua alegria e entusiasmo.
Eu ri também e já chamá-lo para voltar para a festa comigo, mas me lembrei de um outro problema pendente que ele poderia me ajudar.
_Eu sei de um jeito de você me agradecer.
_O que é? Qualquer coisa que você quiser!
_Você vai dar um jeito de tirar a Taís do meu pé hoje.
Ele me olhou confuso. Por um instante pensei se foi uma boa idéia pedir sua ajuda naquele assunto delicado.
_Por quê? Não quer?
Eu tinha pensado numa mentira para me livrar dela, mas prometi usá-la só em último caso. Mas eu não tinha outra coisa pronta pro momento.
_Eu peguei herpes genital._ falei roxo de tanta vergonha.
_O que?_ ele perguntou com uma cara de nojo.
_Não me faça repetir isso.
_Mas onde você pegou isso?
_Não sei, talvez no vestiário daqui do clube, onde eu nado durante a semana.
_Isso é possível?
_Com certeza!_ ainda não tenho certeza se isso é possível, mas deixemos passar.
_Cara...
_Isso fica só entre nós, ok? E se ela ver, vai espalhar pra todo mundo.
_Certo. Eu vou te ajudar, vou pensar em alguma coisa para ela deixar você quieto por hoje.
_Obrigado.
_Uai, uma mão lava a outra.
_Sim, é verdade._ respondi rindo.
Ele me abraçou pelo ombro e foi me guiando de volta para a festa.
_Sabe,_ falou _te conheço há pouco tempo, mas já te considero meu melhor amigo.
Aquilo era uma coisa boa de se ouvir em qualquer momento. Saber que alguém realmente se importa com você, que te leva em consideração.
_Eu também te considero, junto com Alice, meu melhor amigo.
Nos soltamos e chegamos de volta aonde os convidados estavam. Na mesa dos nossos amigos de faculdade, mais duas pessoas tinham chegado, mas estavam de costas, não reconheci de imediato.
_Falando em viados, chegou o casal cor de rosa da turma._ falou Pedro.
Eram Eric e Rafael. Estavam sentados lado a lado, com as cadeiras coladas de tão próximas. O braço de Rafael passava sobre o encosto da cadeira de Eric, como se o abraçasse discretamente. Mesmo sem vê-los de frente, pude ver que eles riam. Senti o veneno do ciúme corroer cada extremidade do meu corpo.
Não sei nem como explicar a natureza do ciúme que eu sentia vendo Rafael e Eric ali, daquela maneira tão explícita, pelo menos aos meus olhos. Eu não podia cobrar nada de Eric, nunca estabelecemos uma relação séria, e sempre que ele ia por esse caminho eu fugia. Eu não tinha direito de cobrar fidelidade dele, não éramos namorados nem nada, nem amá-lo eu amava! Foi como se todo o tempo que compartilhamos, começando da nossa primeira troca de olhares, tivesse estabelecido em mim uma sensação de posse. Eric era meu, ninguém mais podia ter. Era meu direito usá-lo como quisesse e depois deixá-lo guardado esperando por mim, e mais ninguém tinha o direito de brincar com meu melhor brinquedo. Claro que hoje eu enxergo a crueldade do que eu estava sentindo, eu percebo como fui mesquinho, injusto e mau com Eric. Mas naquele momento a única coisa que eu conseguia enxergar na minha frente era ciúme.
Alguém avisou ao “casal” da minha presença, então eles se viraram e vieram me dar parabéns. Os dois sorriam cínicos, como se ninguém ali soubesse que eles estavam juntos, que estavam fudendo por aí na calada da noite como dois animais no cio. Eles achavam que ninguém percebia os olhares de desejo que trocavam, nem como se tocavam “acidentalmente” a todo momento? Eu também percebia claro, mas deixava passar pensando “é um flerte bobo, um brincadeira de amigos, Eric é só meu”. Mas agora eles estavam ali, na minha festa de aniversário, entre meus entes queridos, esfregando na minha cara que eram um casal. Vocês podem pensar “ah, mas você não tem garantias que eles eram um casal”. Garantias eu não tinha mesmo, mas eu sabia, lá no fundo eu sabia que eles estavam juntos.
E como era falso o sorriso de Eric quando me abraçou desejando feliz aniversário. Mal retribuí seu abraço, foi mais um tapinha frio nas suas costas enquanto ele apertava com força as minhas costas. Foi impossível não me sentir mal e deixar aquilo transparecer numa careta. Pedro, que ainda estava ao meu lado, riu interpretando aquilo como uma atitude homofóbica, passando longe da natureza do meu desconforto.
_O aniversariante resolveu aparecer, hein?_ falou Rafael _Tava se escondendo da Taís? Ouvi que ela tá louca periquita atrás de você, já que não é mais pedofilia.
Eu ri da brincadeira de Rafael. Era estranho, eu tinha inúmeras razões para não gostar dele, e em alguns momentos até cheguei a não gostar, mas no fundo eu gostava dele. Ele era daquele tipo de pessoa que te envolve com sua personalidade e seu carisma de tal modo que torna impossível que você não goste dele. Eu queria odiá-lo com todas as minhas forças, fazer dele o vilão da história, mas não conseguia. Dizem que é um mal dos nascidos sob o signo de Áries, não conseguimos guardar rancor de ninguém. Não sei é verdade, acho que aquilo tem muito mais a ver com o jeito de ser de Rafael do que com astrologia.
Pedro já havia voltado para a mesa, deixando nós três sozinhos. Eric levantou a sacola que trazia para mim.
_Seu presente!_ falou sorrindo me entregando.
_Obrigado._ respondi frio.
O sorriso dele desapareceu instantaneamente quando ele percebeu o clima ali. Não tive coragem de olhar para Rafael, mas com certeza ele tinha percebido que havia algo de errado ali, até um cego perceberia.
_Não vai abrir?_ perguntou Eric tentando melhorar o clima.
_Agora não, mais tarde._ e seu sorriso novamente se perdeu _Fiquem à vontade, vou ali receber os convidados que chegaram.
Me virei e saí sem olhá-lo. Eu não estava com cabeça para lidar com aquilo. Todos à minha volta me conheciam, por isso eu não podia levantar a mínima suspeita. E se eu ficasse perto deles, com certeza eu acabaria explodindo todo o ciúme que sentia, e aí nem Deus me salvaria das conseqüências. Era melhor me distanciar e ignorar.
O problema é que eu simplesmente não consegui mais relaxar e aproveitar a festa. Eu tentava me distrair com algum convidado ou entrando numa roda de conversa, mas meus olhos sempre acabam desviando sua atenção para Eric e Rafael, que não raro retribuíam o olhar. E cada vez que aquilo acontecia, eu ficava mais tenso, de modo que a certa altura da festa todos os músculos do meu corpo estavam doloridos. Era visível para todos que eu não estava no meu melhor estado, mas ninguém veio falar comigo sobre isso. Lógico que esse “ninguém” exclui Alice:
_Eu não tenho nada Alice._ respondi quando ela me levou pra um canto isolado do clube.
_Lógico que tem! Você está todo tenso, suas veias parecem que estão para estourar a qualquer momento.
_É essa festa, tá grande demais. Odeio ser o centro das atenções assim.
_Ah, Bernardo!_ falou mostrando que sabe que é mentira.
_Ai, Alice, deixa eu voltar pra lá.
Eu ia saindo, mas ela me segurou.
_Alguma vez eu te deixei na mão? Contei algum segredo seu? Não quero saber o que está acontecendo por curiosidade, eu quero que você desabafe, relaxe e aproveite um pouco da sua festa.
Eu queria muito desabafar com ela, mas para isso eu teria que contar de todas as minhas fugas com Eric durante as últimas semanas e teria que explicar porque não tinha lhe contado antes. Eu realmente não estava no clima para aquele tipo de conversa no momento.
_Eu sei e agradeço muito a boa amiga que você é._ falei tentando parecer o mais gentil possível _Mas eu não preciso e não posso te contar tudo que acontece comigo. Tem coisas que eu tenho que resolver sozinho.
Ela me olhou por algum tempo, depois jogou os braços para cima como se dissesse “desisto”, sem argumentos para rebater o que eu havia dito. Agradeci e voltei para a festa. Algumas vezes eu passava na mesa do pessoal da faculdade, aquela em que estavam Eric e Rafael, mas ali eu evitava olhá-los, tratando-os como se não existissem. Se Rafael tivesse alguma suspeita, agora já devia ser certeza. Alice também percebeu o clima estranho entre nós três. Ela me deu um olhar significativo, mas decidi ignorá-la.
Quando a festa já ia chegando à metade, eu fui para um lugar isolado do clube para respirar um pouco. Eu precisava de alguns minutos de paz e descansar meu sorriso falso um pouco. Aparentemente isso era pedir demais, pois logo ouvi os passos de alguém se aproximando. Me virei para ver quem era, e, adivinhem, era Eric. Ele vinha com a cabeça baixa, como se já estivesse pedindo desculpas antecipadamente. Toda aquela tensão que eu estava sentindo voltou a se transformar em ódio. Eu chegava a bufar de raiva. Ele parou em frente a mim e levantou a cabeça me encarando. Seus olhos, sempre tristes, estavam ainda mais tristes naquele dia. Ele já previa que as coisas que seriam ditas por nós dois ali não seriam nada bonitas.
_Eu acho que a gente tem que conversar._ falou.
O seu tom de voz denunciava que ele não estava totalmente ciente do motivo da minha raiva. Me soou como falsa inocência e o que alimentou ainda mais minha raiva.
_Você acha?!_ falei num grito contido.
_Por que você está me tratando assim?
_Pensa um pouco Eric, o que você pode ter feito?!
_Eu não faço a mínima idéia.
Eu não sabia se aquilo era cinismo ou inocência, mas não estava me ajudando a acalmar.
_Até ontem estávamos bem._ falou _Aí chego aqui, com o melhor dos humores, seguindo suas exigências de não me aproximar demais e você me trata desse jeito, como lixo.
Ele começava a se alterar também, dava para notar pela voz. Ele continuou:
_Anda me tratando como aqueles seus amiguinhos homofóbicos. Fica me olhando como seu eu fosse uma atração de circo, mas é medroso demais para sustentar o olhar. E a expressão de incômodo, de nojo no rosto, como se eu tivesse alguma doença contagiosa. Como você consegue se olhar no espelho sabendo que é o que mais odeia?
Ele parecia estar despejando em mim tudo aquilo que vinha guardando por semanas. Eu me surpreendi com sua agressividade, mas suas palavras não me atingiram tanto, já que eu sabia que não eram verdadeiras.
_Você realmente acha que o que está acontecendo aqui é homofobia?!
_E não é?
_Não! Eu posso ter todos os defeitos do mundo, mas não sou homofóbico!
_Você é! Você é homofóbico com você mesmo!
_Não! Sempre te respeitei, pedi que me desse espaço, mas te respeitei!
_Jura?!_ perguntou irônico.
_É verdade!
_Então quer dizer que você nunca riu de mim com seus amiguinhos homofóbicos?!
Imediatamente me relembrei daquela tarde na casa de Pedro que veio a desencadear uma briga com Alice.
_Tá vendo? Você não nega!_ seus olhos estava cheios de lágrimas _Não sei como eu pude ter qualquer tipo de sentimentos por você!
_Você realmente acha que a minha expressão de nojo, de incômodo eram dirigidos especialmente a você?!
Tive que me segurar para não gritar com ele. Estávamos num lugar isolado, mas era melhor não arriscar.
_Se não, a quem eram dirigidos então?!
_Pra você e seu namoradinho!
Ele parou e ficou me olhando por um tempo, digerindo o que eu havia dito. Então ele caiu na gargalhada, a ponto de se sentar no chão e colocar a mão na barriga:
_Quer dizer que isso tudo é sobre ciúme? Meu Deus!
Eu fiquei o olhando. Ele ainda ria muito e eu bufava de raiva. Ele estava encarando aquilo como se fosse uma daquelas crises bonitinhas de ciúmes, mas não era. Aquilo que eu estava sentindo não tinha nada de fofo, era venenoso. Ele se levantou se aproximou de mim.
_Bernardo...
Ele foi pegar na minha cintura na intenção de me abraçar, mas o empurrei e ele cambaleou para trás, quase caindo. Ele me olhou assustado.
_Você acha isso bonitinho, acha que eu estou sendo fofo?_ perguntei irônico _Pois não, Eric, não é. Você não faz idéia do quanto eu o estou odiando agora. Você estava certo quando disse que eu o estava vendo como um lixo. Você não presta.
_Bernardo..._ seus olhos voltaram a se encher de lágrimas.
_Negue! Negue pra mim que você anda transando com o Rafael!
Acho que no fundo eu ainda esperava que ele negasse, que dissesse que ainda era só meu, mas tudo que tive em resposta foi o silêncio. O silêncio só confirmou aquilo tudo que eu já imaginado: Eric e Rafael eram amantes. Ou pior, eram namorados e EU era o amante! A raiva queimou meu peito, como uma maneira de superar a dor da traição. Minha mão se levantou como se estivesse preste a descrever um arco no ar e acertar o rosto de Eric. Ele apenas fechou os olhos esperando o golpe, como se me dissesse “eu mereço, bata”. Mas não tive coragem. Minha mão ficou travada naquela posição. Ele abriu os olhos e então ficamos nos encarando. Nos seus olhos eu podia ver, ainda mais nítido do que normalmente era, toda a dor do mundo. Minha mão caiu para junto do meu corpo, que também se relaxou, como se estivesse muito cansado para manter aquela posição de guarda.
Ele podia me dar tudo aquilo que você não pode._ falou enfim _Não tem a ver com assumir ou não uma relação de fidelidade. Nunca a estabeleci com ele também. O problema é que aconteceu tudo de uma vez. Num momento eu estava apaixonado pela tua falta de jeito e inocência, e no seguinte eu estava apaixonado por ele e por sua alegria, sua vontade viver a vida custe o que custar aos outros. Eu não queria te machucar, Bernardo. Machucar vocês dois é a última coisa que eu poderia querer na vida. Meu único erro foi me apaixonar por vocês dois.
Eu ouvia aquilo tudo de olhos fechados. Eu não conseguia mais sentir raiva ou dor, nem mesmo pena dele. Eu não estava sentindo nada. Apenas me deixei cair no chão abraçando meus joelhos. Ele continuou:
_Eu tentei escolher um de vocês, mas foi impossível. Sempre que tentava me afastar de um, eu morria de saudade e sucumbia aos meus sentimentos. Lógico que sou culpado aqui por não ter administrado bem meus sentimentos, mas você também tem sua parcela de culpa, Bernardo.
Levantei minha cabeça e o encarei, agora realmente curioso pelo que ele iria falar.
_Por que você não pode me amar?_ perguntou com lágrimas correndo pelo seu rosto _Eu entendo que você tem medo do que possa te acontecer, do que possam pensar de você. Não é esse nosso maior problema. O problema é que eu via nos seus olhos que você não me amava. Eu sei que você gosta de mim, mas amar não, nunca amou. Não sei nem mesmo se você tentou. Se eu soubesse que você me amava, eu teria te dado a mão e enfrentado o mundo com você. Eu teria de dado todo o tempo do mundo para lidar com isso. Se você me amasse eu ficaria do seu lado não importasse o que acontecesse, e que se danasse o resto do mundo, só nós importaríamos. Se você tivesse me amado, eu teria te escolhido. Não sei se Rafael me ama, mas ele tem um jeito de agir sem medo das conseqüências. De uma certa maneira, eu sabia que ele me protegeria de qualquer coisa, que ele era meu porto seguro e eu precisava desse porto seguro, desse refúgio. Você nunca pôde me dar o que eu queria, você nunca pôde me dar amor.
_Vai embora daqui, Eric._ falei novamente abaixando a cabeça e fechando os olhos.
_Bernardo...
_Vai embora, eu não quero mais te ver aqui. Você já conseguiu estragar meu aniversário.
E ele foi. Foi embora da festa. Era tudo verdade, eu não o amava, nunca o amei, nem mesmo tentei. Eric foi uma coisa ótima que me aconteceu, por mais que negasse, e eu o deixei escapar. Ele era apaixonado por mim, mas eu não conseguia amá-lo, talvez por medo. Rafael não tinha medo, ele era o homem certo para Eric.
Ouvi passos voltando, mas eu ainda não estava bem para retomar a conversa.
_Já pedi para você ir embora._ falei sem levantar a cabeça.
_Quer dizer que você anda dormindo com meu namorado?!
Levantei a cabeça e lá estava: Rafael de braços cruzados e com olhos pegando fogo.
O que eu deveria responder para Rafael? Admitir que eu estava tendo um caso com seu namorado, dormindo com ele em cada oportunidade que havia surgido nas últimas semanas? Ou então, quem sabe, negar tudo na esperança de que ele não tivesse ouvido nada, talvez até bancando o hétero ofendido pela acusação? Na dúvida, escolhi o silêncio. Eu via raiva nos olhos de Rafael.
Talvez essa seja uma boa oportunidade de explicar Rafael. Quando o apresentei lá trás, lhe descrevi como o anti-Bernardo, e essa é a definição perfeita para ele. Do mesmo jeito que eu reprimo tudo o que sinto, Rafael extravasa qualquer sentimento, mesmo os mínimos. Enquanto eu escondo minhas opiniões até que alguém me questione, Rafael faz questão de se impor, de fazer sua opinião ressoar. Eu me escondo do mundo, Rafael é sempre o centro das atenções. Nesta história, eu era um mero coadjuvante, ele era o protagonista.
Por causa do ciúme que sempre senti dele como Eric, nunca me aproximei dele ou deixei que ele se aproximasse de mim. Mas como disse antes, nunca tive raiva dele, e portanto essa não foi a razão. Acho que eu tinha medo de gostar dele. Eu tinha medo conhecê-lo mais a fundo e, como todos, cair apaixonado por ele e por sua personalidade calorosa. Vê-lo de longe facilitava minha visão dele como vilão da história.
Lógico que tínhamos semelhanças. Pensávamos da mesma forma, tínhamos gostos parecidos e opiniões próximas sobre vários assuntos. Não éramos tão antagônicos assim, só para quem visse de fora. E até aquele momento eu só o conhecia por fora, por isso o denominei anti-eu. Essa visão só começou a cair a partir daquela conversa.
_Então, você está dormindo com meu namorado, não está?
Era mais uma afirmação do que uma pergunta. Não havia como negar. Pela rapidez com que ele havia chegado ali, ele devia ter ouvido toda minha conversa com Eric. Apesar dele ser o, chamemos assim, causador do ciúme que eu estava sentindo, ainda não consegui sentir raiva dele, por isso respondi impassivelmente:
_Sim.
_Hurgh!
Ele deu um berro raivoso meio abafado, pôs as mãos sobre a cabeça e ficou rodando perto de mim sem motivo aparente.
_Eu não acredito que confiei nele! Era tudo tão claro, tava tudo ali pra eu ver!_ ele falava mais para ele mesmo do que para mim _Eu me declarei para ele, eu corri o risco, eu me deixei ser alvo de fofocas, e pra que? Pra ganhar um par de chifres! Para ter que dividi-lo com outro cara.
Fiquei com pena. Ele parecia realmente atordoado com aquilo. Ele parecia nutrir sentimentos sérios por Eric.
_Eu imagino que você tenha ouvido nossa conversa..._ falei.
_Sim, mas nem precisava._ a voz dele estava se acalmando, mas ele ainda não me olhava _O jeito que você estava tratando ele o dia todo, tava bem claro que era um briga de casal.
_Será que mais alguém percebeu?_ perguntei preocupado.
_Você acha que me importo?_ falou raivoso.
Tentei deixar para me preocupar com aquilo mais tarde, mas fiquei aflito. Durante todo o dia eu tinha dado mostras muito claras de que sentia mais do que indiferença por Eric. Tomara que todos tenham achado, como Pedro, que era algum tipo de homofobia, seria mais fácil de explicar depois.
Rafael caiu sentado no chão na minha frente, abaixou a cabeça e pôs-se a chorar baixinho. Fiquei com pena, mas achei meio humilhante. Era o tipo de coisa que eu disse sobre ele não esconder o que estava sentindo. Ele se sentia triste, então chorou. Eu nunca faria isso, deixar outra pessoa, um semi-desconhecido, me ver chorar. Eu guardaria tudo muito bem guardado e choraria num lugar mais adequado, como minha cama ou o chuveiro, por exemplo. E tinha mais um problema ali: eu era péssimo em consolar os outros, não sabia bem o que fazer ou o que falar. Ainda mais naquela situação. Comecei a me sentir culpado.
_Me desculpe, Rafael, eu não sabia...
Foi tudo o que consegui lhe falar, mas ele não esboçou reação. Continuou sentado chorando do mesmo jeito. Levou um tempo até ele me olhar. Seus olhos estavam muito vermelhos.
_Mas você desconfiava, né?_ novamente, ele mais afirmou do que perguntou.
_Acho que sim. Acho que todos sempre desconfiaram. Mas eu não queria ver, então fingi que não havia nada ali._ respondi o mais sinceramente que pude.
Ele ficou me olhando por um tempo, indecifrável. Ainda sentado, começou a secar os olhos, embora algumas lágrimas teimassem em continuar caindo.
_Eu sabia que as pessoas desconfiavam, sabe?_ falou _Não liguei. Pensei “não é problema deles, a vida é minha e eu faço o que quiser dela”, muito romantizado eu sei. Mas eu estava apaixonado por ele, achava que tudo valia à pena. Nunca tinha acontecido algo assim comigo, então eu resolvi replicar atitudes de livros e filmes que vi por aí. E pra quê isso tudo? Pra ele vir e fazer isso.
Eu ouvia tudo calado. Eu entendia sua dor. Ele resolveu correr um risco enorme por Eric, e então descobriu que não foi um bom investimento. Rafael continuou:
_Não é só a traição que dói. É o fato de eu ter me dado inteiro a ele. Eu me entreguei numa bandeja de prata. Foi como se ele tivesse me matado. Eu me apaixonei por aquele filho de uma puta!
Percebi que ele tinha uma queda por excesso de dramaticidade. Mas a cena toda estava muito triste. Toda a minha raiva de Eric tinha se dissipado e se transformado em pena de Rafael. Mesmo não sendo minha especialidade, eu tinha que consolá-lo:
_Se você ouviu a conversa, ouviu ele falando que..._ comecei, mas ele me interrompeu.
_Que estava apaixonado por nós dois. É, eu ouvi. Isso não justifica nada, ele devia ter feito uma escolha e vivido com ela.
Seu tom de voz variava de raiva para a tristeza e vice-versa.
_E ouvi muito bem também a parte em que ele dizia que se você o amasse teria sido você, ou seja, eu sou um consolo!_ falou.
_Não foi bem isso que entendi. Soou para mim como se ele estivesse apaixonado por partes de cada um de nós, ao mesmo tempo que havia partes de nós dois que ele não gostava.
_Vai defendê-lo agora?!
_Não, lógico que não. Não é por não estar me expressando que não estou sofrendo tanto quanto você. Me respeite._ falei tentando não me exaltar.
Ele não foi nem o primeiro, nem o último a subestimar meus sentimentos apenas por eu não gostar de demonstrá-los. Eu não preciso deixar todos informados sobre meu estado de espírito.
_Desculpe..._ falou novamente abaixando a cabeça.
_Desculpado. Rafael?
_Sim?
_Se ouviu toda a conversa, por que esperou ele ir embora para vir falar comigo em vez de confrontá-lo?
Ele pareceu pensar um pouco sobre aquilo, como se estivesse tentando responder para si mesmo antes.
_Não sei, foi instintivo. Eu sou assim, faço as coisas por impulso, não planejei deixá-lo ir pra depois vir falar com você.
_Hum...
_Bernardo...
_O que?
_Você realmente está se sentindo tão mal como eu?
_Estou. Também estou carregando o peso da traição. Também dói em mim, só temos jeitos diferentes de demonstrar isso.
Ele ficou me olhando pensativo por alguns instantes. Eu não sabia bem o motivo, mas seu olhar me incomodava. Eu não conseguia encará-lo de volta, e quando teimava em fazê-lo, meu corpo parecia prestes a entrar em combustão.
_Posso te fazer uma pergunta?_ falou.
_Claro.
_Quando começou?
_Uma troca de olhares no primeiro dia, um beijo na primeira semana, a primeira transa pouco tempo depois e assim foi. Já tem algumas semanas.
Ele riu sem graça.
_Você acredita que eu fui estúpido o bastante para comprar uma aliança para ele? Eu ia pedi-lo em namoro amanhã durante um piquenique.
_Sinto muito._ respondi sem graça diante daquela informação.
_Pois é. Também já estávamos nos vendo a algumas semanas, então pensei que já era hora de dar o próximo passo. Olhando pelo lado positivo, ainda bem que não cometi mais esse erro.
_Talvez ele tivesse me deixado definitivamente se você tivesse pedido ele em namoro...
_Talvez, mas a traição ainda estaria lá, não importa muito se tivéssemos combinado fidelidade ou não. Sabe, não nasci para essas relações de entrelinhas, tipo, “mas nunca combinamos ser fiéis um ao outro”. Foda-se, se está comigo, é só comigo, independente de haver uma aliança ou não nos nossos dedos.
_É, eu também penso assim...
Ficamos novamente em silêncio sem jeito um com o outro. Nunca havíamos tido qualquer tipo de intimidade e agora estávamos ali, conversando sobre nossa vida amorosa. Era uma situação bem estranha, porém proveitosa. Tirou da minha cabeça várias ressalvas e preconceitos que eu tinha com o jeito de ser de Rafael. O fato dele ser totalmente diferente de mim, não o fazia uma pessoa desagradável. Dentro das possibilidades daquele momento, estávamos nos dando bem.
_De qualquer jeito, sinto muito por ter atrapalhado vocês._ falei.
_Eu posso te dizer o mesmo.
_Não... Eu e Eric nunca seríamos nada além do que parceiros de sexo. Não é o que quero para mim, não tenho cabeça para isso. E além do mais, nunca nutri sentimentos mais profundos por ele. Se fosse para dar certo, seria entre você e ele.
_Bom, então nunca vai ser, não consigo nem mesmo olhar para ele agora.
_Mas e quando a raiva passar? Não existe alguma chance de vocês se entenderem no futuro?
_Não. Eu não esqueço o que fizeram comigo. Talvez eu até o perdoe um dia, mas nunca vou esquecer. Esse é o fim definitivo. Eu nunca mais quero ter nada com ele, nem amizade.
_Eu e ele não deveria nem mesmo ter começado._ respondi mesmo sem ele me perguntar _Foi tudo um enorme erro, mas serviu como lição. Também não tenho intenção de ter qualquer outro tipo de relação com ele depois de tudo isso.
Eu também me submeti ao risco, mesmo que um risco menor que o que Rafael correu. Eu corri o risco de me apaixonar por Eric e colocar tudo a perder. Por isso vi toda a situação como uma espécie de lição. Não poderia acontecer de novo.
Não havia mais nada que podíamos dizer um ao outro naquele momento. O que estava feito estava feito. Agora era engolir a dor e a humilhação e seguir com vida, desta vez mais atento.
_Me desculpe, mas tenho que voltar para a festa, devem estar me procurando._ falei.
_Vai lá._ respondeu ainda sentado no chão.
Eu comecei a andar, mas parei me lembrando de lhe fazer um último pedido:
_Posso te pedir uma coisa?
_Se eu puder fazer.
_Não conte nada a ninguém sobre mim ou sobre o que conversamos aqui.
_Pode deixar. Não tinha intenção._ respondeu.
_Obrigado.
E voltei para a festa. Assim que cheguei, Alice foi correndo ao meu encontro. Segurou meu braço com força, colou sua boca no meu ouvido e perguntou sussurrando:
_Onde você diabos você se meteu?
_Tirei um tempo para dar uma respirada._ menti.
_E essa respirada tem alguma coisa a ver com Eric ter ido embora daqui quase chorando há alguns minutos?
_Não sei de nada._ menti novamente, mas com bastante cinismo, para ela entender que eu não responderia.
Neste momento, Rafael passou atrás de nós, e apesar de não estar chorando mais, deixava claro que havia chorado. Trocamos um olhar rápido e Alice percebeu.
_O que está acontecendo aqui, Bernardo?!_ perguntou apertando mais o meu braço.
_Depois te conto._ falei me desvencilhando dela.
Eu não tinha certeza se contaria. Antes de qualquer coisa eu precisava deitar na minha cama e refletir sobre tudo aquilo que estava acontecendo. Mas não naquele momento, porque eu ainda estava dando uma festa de aniversário e minha mãe veio me lembrar disso, me puxando para a mesa do bolo para cantar parabéns. E lá fui eu completar meu dia com aquele momento embaraçoso. Soprei as velas e pronto, eu tinha dezoito anos. Era maior de idade agora, responsável por mim mesmo, independente, livre. Mas não me senti assim. Tudo o que eu conseguia pensar no momento era nos olhos vermelhos e tristes de Rafael me olhando a poucos metros de distância.
A festa seguiu entrando pela noite e não parecia ter hora para acabar, com meus convidados cada vez mais bêbados. Eu me concentrava em fugir de Alice, na maior parte das vezes com ajuda de Pedro, seu repelente natural. Tudo corria tranquilamente até que Rafael fez um sinal me chamando para o mesmo lugar em que havíamos conversado antes. Aflito e curioso, fui ao seu encontro. O que ele poderia querer?
_Quão furioso com Eric você está?_ perguntou quando eu cheguei lá. Seu tom de voz estava estranhamente animado.
_O que?
_Quão furioso com Eric você está?
Mesmo sem entender o motivo da pergunta, respondi:
_Agora? Nem tão furioso. Tô magoado, ferido.
_Bom, eu estou com raiva e só consigo aliviar minha raiva de um modo. Talvez com esse modo você possa extravasar também.
_O que é?_ perguntei já meio temeroso com a resposta.
_E se nós nos vingássemos de Eric?
Mesmo no escuro, tenho certeza que Rafael conseguiu ver meus olhos se arregalarem com a idéia. Não era da minha índole sair me vingando dos outros. Normalmente eu me reerguia e seguia caminhando, sem me preocupar com revanchismos. Sempre achei isso coisa de gente fraca, que precisa se auto-afirmar ou, pior, que se acha uma vilã de novela mexicana.
_Quê?! Tá louco? Por que eu faria isso?
_E deixar tudo passar em branco?
_É, é assim que eu faço.
_Mas não comigo. Doeu. Eu me apaixonei por ele. E só vai parar de doer quando eu ver ele machucado também._ sua voz era uma mistura de raiva e tristeza _Vai me ajudar ou não?
Eu não queria me vingar de Eric. Não tinha a menor vontade de embarcar numa dessa. Realmente não era do meu feitio. Acho que eu queria ser condescendente com Rafael. Ele estava sofrendo com aquilo e eu sentia a necessidade de ajudá-lo de algum jeito. Eu tinha que livrá-lo daquela dor, mesmo que para isso eu infligisse dor a outro ser humano.
_Sim, eu te ajudo.
Quatro palavrinhas que mudaram para sempre a minha vida.