Não sei explicar a natureza da minha relação com ele até aquele momento, talvez fosse pena ou compaixão, mas de algum modo eu queria ajudá-lo, queria permitir que ele superasse aquilo e, como eu, seguisse com a vida. Só por isso aceitei participar de uma vingança contra Eric. Eu ia me vingar de Eric por Rafael.
_E o que você está pensando em fazer?_ perguntei ainda com a cabeça a mil.
_Ainda não sei. Tenho que pensar.
_Eu não tenho certeza se isso é uma boa idéia...
_Você vai me ajudar ou não?!
Suspirei fundo olhando eu seus olhos raivosos.
_Sim, eu vou te ajudar, apesar de não concordar com isso.
_Você vai ver como vai se sentir melhor depois disso.
_Se você está dizendo...
Sem me despedir dele desta vez, saí dali e retornei para a festa. O álcool começava a provocar sono em alguns convidados e a festa ia se acalmando. Alice, ao contrário, estava muito alerta ainda e veio ao meu encontro assim que me viu. Eu estava cansado de fugir dela, eu ia acabar tendo que contar tudo a ela.
_Eu vi você sumindo com Rafael no escuro, Bernardo. O que diabos está acontecendo aqui?
Suspirei cansado. Não queria discutir sobre aquilo naquele momento. Eu queria poder pensar sozinho sobre aquilo dia primeiro.
_Amanhã, Alice. Amanhã eu prometo que te conto tudo.
Ela não pareceu completamente satisfeita com minha resposta, mas aceitou que conversássemos no dia seguinte. Àquela altura dos acontecimentos, eu só queria que aquele dia acabasse. Eu estava destruído emocionalmente, o que me deixava destruído fisicamente. Eu mal me agüentava em pé. Ainda bem que a maioria dos convidados já estavam indo embora.
Pedro era um dos últimos, e veio se despedir de mim:
_De novo, cara, parabéns._ falou me dando tapinhas no ombro.
_Valeu, cara.
_E você vai me ajudar mesmo com aquela história?_ perguntou mais baixo.
Tanta coisa tinha acontecido desde então, que demorei alguns segundos para entender que falávamos sobre seu plano de conquistar Alice.
_Claro, vou te ajudar assim.
_Beleza! Vou ser eternamente grato.
_Que isso, você me ajudou hoje me livrando da Taís.
_Era o mínimo que podia fazer. Aliás, melhoras aí._ falou se referindo à minha inventada herpes genital.
_Obrigado._ falei corando de vergonha.
_Bom, então até segunda-feira.
_Até!
E com ele foram-se mais alguns colegas. Rafael foi o próximo a vir se despedir de mim. Suspirei fundo. Sua presença mexia comigo quase ao ponto de ser um incômodo.
_Desculpe por, até certo ponto, ter estragado sua festa de dezoito anos.
_Nós dois sabemos que não foi culpa sua.
_Mesmo assim...
Ficamos os dois em silêncio, nos encarando, ambos sem jeito depois de tudo que havia acontecido mais cedo. Mas o silêncio constrangedor não durou muito tempo, Rafael não conseguia ficar calado por muito tempo.
_Podemos nos encontrar para conversar? Amanhã talvez?_ perguntou.
_Amanhã não. Preciso de um tempo para absorver tudo isso. Segunda-feira, na faculdade, a gente conversa.
_Certo. Então até segunda, e feliz aniversário.
_Obrigado, até.
Trocamos um abraço desajeitado, que mal podia ser chamado de abraço de tão pouco que durou e tamanha sua frieza. Meu estômago formigava antecipando o nervosismo da conversa que teríamos na segunda-feira.
A próxima na lista de despedida foi Alice, que trazia a expressão desconfiada no rosto, provavelmente por ter me visto me despedindo de Rafael. Não insistiu mais em saber o que estava acontecendo, mas avisou que iria á minha casa depois do almoço para conversarmos. Concordei com a cabeça e a abracei, agradecendo pela sua ajuda na preparação da festa.
Sobraram mais alguns gatos pingados, na maioria amigos do meu pai, que logo foram embora também. Fui embora de carro com meus pais e meus irmãos caçulas. Ao chegar em casa, tomei um banho e me deitei. Era pouco mais de meia-noite, mas, apesar do cansaço, eu não conseguia dormir. Tudo ainda estava muito vivo na minha cabeça. Rafael e Eric iam e vinham nos meus pensamentos.
Sim, eu era o que era e me odiava por isso. Como eu conseguia me olhar no espelho todo dia? Simples: eu dizia para mim mesmo que eu controlava a pessoa que era, eu tinha poder para mudar minha vida. Eu era homofófico como disse Eric? Eu não odiava gays, eu só não queria ser um. Aquilo fazia de mim uma pessoa má? Eu estava projetando em Eric meus preconceitos inconscientemente?
Eu o odiava? Não, eu não conseguia odiar ninguém e Eric não escapava dessa regra. Mas eu estava magoado, ferido, traído. Eu não queria mais ver Eric, tocar Eric, e muito menos conversar com Eric. Ele me feriu e eu não consigo esquecer meus algozes, mesmo depois que as feridas cicatrizam.
Eu nunca amei Eric, nem nunca tentei. Eu tinha uma parcela de culpa naquilo tudo então? Eu poderia ter evitado todo aquele sofrimento? Não, não poderia. Com o tempo eu percebi que mesmo tentando, eu não conseguiria amar Eric. Não se passa a amar alguém com base em tentativas, ou se ama, ou não. Rafael se apaixonou por ele e olha como terminou. Então não, eu não me culpo por não ter amado Eric, eu lhe dei tudo que eu podia lhe dar naquele momento sem me prejudicar: sexo.
E ainda tinha aquela maldita vingança na minha cabeça. Eu realmente não entendi minha submissão a Rafael. Por que eu aceitei fazer parte de uma coisa que eu certamente me arrependeria só para satisfazê-lo? Que tipo de poder ele tinha sobre mim?
Eu não sei exatamente quando eu comecei a chorar, lembro apenas de dormir com meu travesseiro molhado de lágrimas.
[...]
Alguém me sacudia violentamente, acordei assustado. Alguém tinha aberto as cortinas deixando meu quarto inundado de luz solar e meus olhos arderam quando os abri. Demorei um tempo até me acostumar com a claridade e perceber que era Alice quem me sacudia.
_Aff, acho que combinamos de conversar depois do almoço!_ falei com a voz ainda rouca de sono.
_Já são quase duas da tarde.
_O que?
_Hibernou, hein?
_Putz, eu dormi quase doze horas direto.
_É, sua mente estava muito cansada. Agora me conte o porquê.
Ela me olhava sentada na minha cama de braços cruzados. A olhei e ela estava séria, realmente esperando pela resposta. Me deixei cair de novo na cama, ainda não tinha acordado totalmente.
_Não aqui. Vou tomar um banho, vamos almoçar no shopping e lá conversamos.
_Para de me enrolar, Bernardo!
_Não aqui._ falei me levantando e indo para o banheiro.
[...]
Alice estava me olhando boquiaberta depois de eu ter lhe contado tudo, desde os meus encontros secretos com Eric que escondi dela, até o plano de vingança de Rafael. Enquanto ela digeria aquela grande quantidade de informações, me concentrei no meu almoço. Demorou alguns instantes para ela acordar.
_Por que não me contou tudo isso antes?
_Porque eu não queria admitir que estava quebrando uma promessa que fiz para mim mesmo de nunca mais me relacionar com outro cara.
_Isso é uma idiotice, eu nunca te condenaria.
_Eu estava com vergonha de admitir que não deu certo, ok?_ falei impaciente.
_E ficou segurando essa bomba sozinho! Burro!
_Alice!
_Burro, burro, burro! Eu estou aqui para isso, pra te ajudar a enfrentar esse tipo de coisa.
_Tá, ok, me desculpe, eu devia ter te contado._ falei tentando encerrar a discussão.
_Então quer dizer que Eric namorava Rafael e tinha você como amante?
_Você faz eu me sentir muito melhor colocando as coisas sob essa ótica._ respondi com ironia.
_Desculpe.
_Mas sim, Rafael era o namorado e eu o amante.
Ela ficou um tempo olhando pro nada, pensativa. Decifrei com facilidade o que se passava em sua cabeça.
_Você também acha que eu tenho uma parcela de culpa por não ter tentado gostar dele de verdade?
_Mais ou menos._ só uma melhor amiga poderia admitir uma coisa daquela, que você tinha culpa na traição do seu parceiro.
_Alice!
_Você também sabe que é verdade. Talvez se você tivesse se levado, poderia ter evitado isso tudo.
_Não acho.
_Nunca saberemos. Mas uma coisa certamente é sua culpa: você sempre desconfiou que existia algo entre Eric e Rafael, poderia ter investigado. Ou mesmo simplesmente ter perguntado a Eric, ele não conseguiria mentir. Acho que inconscientemente você sempre soube que existiam três pessoas naquele relacionamento e se calou porque era conveniente.
Não tinha como negar aquilo, eu sempre desconfiei da relação de Eric e Rafael, desde a primeira troca de olhares entre eles que presenciei. Talvez eu realmente soubesse e estivesse me enganando. Eric, de um certo modo, me fazia sentir especial. Foi alguém que eu cativei sendo quem eu sou de verdade. Alguém que se apaixonou pelo Bernardo atrás da máscara. Eu não queria dividir isso com ninguém. Eu queria pensar que eu realmente era especial para ele. Eu queria me sentir amado.
_Pode ser..._ respondi abaixando a cabeça e me concentrando no meu prato.
_E pra que diabos você tinha que prometer que ajudaria Rafael a se vingar?!
_Eu sei, eu sei!
_Você quer se vingar dele? Porque, tipo, é meio que seu direito.
_Não, não. Só quero esquecer tudo e seguir em frente.
_Então diga isso pro Rafael!
_Eu não posso, ele precisa disso pra seguir em frente. Ele não é como eu.
_E o que importa os sentimentos de Rafael?
_Eu meio que me sinto um pouco culpado pela dor que ele está sentindo.
_Bernardo..._ falou balançando a cabeça.
_Eu sei, é complicado.
Ela parou, me olhou e sorriu com o canto da boca.
_Tem certeza que é só esse o motivo?
_Claro, o que mais poderia ser?
_Não sei...
Ela não falou mais nada, guardando o que pensou para si mesma. Alice estava dentro da minha cabeça e já tinha percebido coisas que eu nem imaginava ainda.
[...]
Fui para a faculdade psicologicamente despreparado para as conversas que teria com Rafael e Pedro, além de ter que encontrar com Eric. Nem tive tempo de ficar ansioso, mal cheguei e Rafael já saiu me puxando para um canto isolado do prédio. Era de manhã e eu ainda estava acordando, por isso a ficha foi caindo aos poucos.
_O que foi?_ perguntei assustado.
_Eu já sei como vamos nos vingar de Eric!
Seus olhos brilhavam. Eu suspirei fundo com medo do que viria a seguir. Não tinha mais como fugir, eu fazia parte daquilo.
_Como?
_Com a mesma moeda: traição.
_Hã?
_Eu e você vamos nos aproximar aos poucos aos olhos dele, então num belo dia, por acaso, Eric vai nos flagrar trocando um beijo. Vai doer ainda mais do que está doendo em nós!
Tudo o que passava pela minha cabeça era: “onde eu fui meter?”
Tudo o que eu conseguia fazer era rir. Eu me agachava para gargalhar. O ar chegava a me faltar enquanto eu caia no chão sem fôlego. Era tudo tão absurdo que ficava engraçado. Era hilário! Eu e o Rafael fingindo namorar! Para fazer ciúmes no Eric! Quando mais eu pensava naquela idéia estapafúrdia, mais eu ria. Rafael me assistia atento esperando eu parar.
_Você não pode estar falando sério!_ falei ainda em meio a risos.
_E por que não? É um ótimo plano.
_Você é louco._ respondi já começando a perder a graça.
_O que tem de mais? É um simples teatrinho!
Ele falava como se estivesse a beira de se desesperar para que eu entendesse. Mas eu entendia sim, entendia muito bem a idéia e suas conseqüências para Eric. O grande porém era que eu não iria me envolver com outro cara, ainda que fosse de mentirinha.
_Eu não vou fazer isso, Rafael._ falei já recuperado me levantando.
_Por que não? Vai ser ótimo, pagar Eric com a mesma moeda!
_Eu não vou fazer isso.
_Você já perdoou? Não acha que ele mereça pagar por isso?!
_Não é essa a questão!
_Qual é então?!
_Eu não vou me envolver com outro cara!
Já estávamos quase gritando um com outro, mas assim que eu disse aquilo, ficamos parados um olhando por outro. Ele absorvia as muitas informações sobre mim que havia naquela simples frase, eu me lamentava em silêncio por não ter segurado minha língua.
_Você...?
_Você ouviu o que eu disse, tire suas próprias conclusões.
_Você não está ok com isso?_ perguntou se referindo à homossexualidade.
_Não, não estou. Por isso consigo deixar essa coisa toda do Eric passar. Pra mim foi como um presente que ele me deu ao fazer eu parar de desejá-lo. Por isso eu não estou afim de uma vingança.
Falei desabafando aquilo que estava na minha cabeça. Novamente repito que eu não sou desse tipo de pessoa, que solta tudo que vem a cabeça sem pensar nas conseqüências, mas Rafael tinha um certo poder sobre mim. Era como se ele pudesse me ler, como se sua presença tornasse meus disfarces inúteis.
_Então porque concordou em me ajudar?_ perguntou.
Era uma pergunta honesta, só que eu não tinha resposta para ela. Eu não fazia a mínima idéia de porque tinha entrado naquele jogo de vingança. Tudo o que eu sabia era do jeito que eu me senti quando ele pediu minha ajuda.
_Eu não sei. Acho que eu quis te ajudar, arranjar um jeito de estancar aquela raiva toda que você estava demonstrando sábado.
Falei sem olhar nos seus olhos. Eu tinha medo dele ler minha mente e descobrir coisas que eu mesmo ainda não entendia completamente. Rafael ficou um tempo em silêncio pensando sobre as coisas que eu estava lhe contando. Eu já me preparava para ir embora com a certeza que mais nada sairia daquela conversa, mas ele tornou a falar me fazendo ficar:
_Então faça por mim. Eu preciso disso, Bernardo. Esse é meu jeito de virar a página e seguir em frente, e eu preciso de você para isso.
_Rafael...
_Eu sei que você não está ok com tudo isso ainda, mas nós não vamos precisar fazer nada. Só fingir que viramos amigos aos olhos de todos, e vai ser só um beijo aos olhos de Eric, nada mais. Pode até ser sem língua, um beijo técnico.
_Rafael..._ eu suspirei meio rindo, meio cansando de ficar dizendo não.
_Bernardo,_ ele falou me segurando pelos ombros e me fazendo olhar diretamente para seus olhos _por favor
Acho que era recíproco. Do mesmo jeito que ele parecia conseguir coisas só no meu olhar, eu também podia jurar ser capaz de dizer tudo aquilo que ele estava sentindo através do seu olhar. Nos seus olhos eu via a sinceridade do seu pedido. Era um apelo desesperado. Ele realmente precisava daquela revanche para seguir em frente. Eu sempre fui péssimo em dizer “não”, mas isso era ainda mais grave com Rafael depois que estabelecemos essa estranha e incômoda conexão psíquica.
_O que eu estou prestes a fazer?!_ perguntei em voz alta mais para mim mesmo do que para ele.
_Isso é um sim?_ perguntou abrindo um sorriso.
_Droga! É!
_Obrigado cara!_ respondeu me envolvendo num abraço.
Meu coração se acelerou quando senti o calor do seu corpo junto ao meu. Como era bom seu perfume... Como era macia sua pele... Como era boa a sensação da sua barba por fazer arranhando de leve minha bochecha... Como seu abraço era firme e dava uma confortante sensação de segurança... Como era boa aquela sensação no meu estômago como se eu estivesse caindo em queda livre diretamente da estratosfera...
Todo mundo já percebeu o que estava acontecendo, mas eu resolvi fechar meus olhos. Seria só um beijo e nada mais. Eu estava tão enganado...
[...]
Eu ainda estava meio aéreo com o abraço de Rafael, mas ignorava totalmente os motivos. Não tentava nem mesmo justificar com alguma mentira para mim mesmo. Eu estava bem, e estava bem com isso. Nós dois estávamos parados em frente a porta já fechada da nossa sala.
_Pronto?_ perguntou Rafael.
_Pronto._ falei num suspiro _E como vamos fazer?
_Humm. Vamos entrar rindo, como se estivéssemos rindo de uma piada, mas discretamente, nada muito exagerado.
_Ele não vai desconfiar da nossa amizade repentina?
_Talvez, mas vamos fazê-lo acreditar nela.
_Ok.
_Vamos?
_Vamos.
E lá fomos nós. Abrimos a porta e entramos juntos rindo, mas rapidamente nos reprimindo pois o professor já estava dando aula. Tudo milimetricamente calculado, lógico. E lá estava Eric, no seu lugar de sempre. Eu o encarei por poucos segundos, mas foi tempo o bastante para notar que ele estava péssimo. Parecia que ele não dormia a uma semana. Tinha olheiras escuras e profundas, uma expressão abatida e os olhos ainda mais tristes que o de costume. Mas notei também sua cara de surpresa quando nos viu juntos, nos comportando como velhos amigos. Me deu pena dele e quase sorri em solidariedade, mas antes de eu acabar com todo nosso plano, Rafael me puxou discretamente e foi me guiando para dois lugares vagos ao lado de Alice. Alice era outra que nos encarava. Corajosamente olhei para ela e tudo o que ela fez foi um sinal negativo com a cabeça, deixando bem claro que desaprovava o que estávamos fazendo.
Para vocês conseguirem visualizar melhor a cena, Rafael estava sentado na minha frente, Alice à minha esquerda e Pedro à minha direita, todos nós no fundo esquerdo da sala, enquanto Eric estava sentado no canto direito. Todos na sala pareceram estranhar um pouco minha nova amizade com Rafael, o que me deixou um pouco inquieto, mas logo ninguém mais estava prestando atenção na gente. Ninguém excluindo Eric e Alice. Mesmo sem olhar para ele, eu senti o olhar de Eric me queimando. Rafael parecia estar muito concentrado na aula, também não dava bola para ele. Tentei seguir seu exemplo e me concentrar no professor, mas Alice me cutucou.
_Além de cúmplices agora vocês são amigos?
Ela perguntou sussurrando, mas foi o bastante para Rafael ouvir e virar para trás intrigado.
_Sim, ela sabe._respondi para ele e depois me virei para Alice _Depois conversamos, agora não.
Ela balançou a cabeça negativamente deixando claro que desaprovava aquilo tudo. Novamente tentei me concentrar na aula, mas naquele dia eu estava destinado a não ser deixado em paz. Pedro, sentado ao meu lado, me cutucou e falou sussurrando:
_Depois temos que conversar sobre aquele assunto que você ia me ajudar.
O professor já estava me encarando demais, e como eu não queria passar pelo vexame de ser expulso de sala por conversar demais na faculdade, não respondi Pedro. Arranquei um pedaço da última folha do meu caderno e escrevi:
“Eu não esqueci, no intervalo a gente se fala.”
Entreguei o bilhete para ele, que riu, escreveu uma resposta e me entregou:
“Conversando por bilhetinhos? Somos meninas de doze anos de idade?”
Nem me dei ao trabalho de responder, amassei o papel e tentei me concentrar na aula, sem sucesso. Tudo o que eu conseguia pensar era em como seria meu recreio: eu teria que conversar com Rafael sobre Alice saber sobre nossa relação, teria que conversar com Alice sobre minha relação com Rafael, teria que conversar com Pedro sobre sua relação com Alice, e possivelmente seria interrogado por Eric sobre minha nova relação com Rafael. Decidi que o melhor a fazer seria abaixar a cabeça e dormir, tentando descansar um pouco para o que me esperava.
Só ousei levantar minha cabeça quando ouvi o professor se despedir. Quase que imediatamente, Alice, Pedro e Rafael se viraram na minha direção, mas falei antes que qualquer um deles abrisse a boca:
_Eu vou ao banheiro e não quero ninguém me seguindo. Eu tenho o direito de mijar em paz. Depois eu vou na lanchonete, se quiserem falar algo comigo, vai ser lá. Com licença.
Falei e saí da sala antes que algum deles respondesse. Como foi dito, fui ao banheiro e adivinha quem me esperava do lado de fora de um dos boxes? Sim, ele, Eric. Ele me encarava de braços cruzados encostado na parede. Não sei a sensação que ele estava querendo me passar, mas tudo o que consegui sentir por ele foi pena ao ver suas olheiras e sua expressão triste. Fingi que não o tinha visto e fui direito à torneira lavar minha mão. Estávamos sozinhos ali.
_Então quer dizer que você e Rafael agora são amigos? Chegam na sala juntos rindo?
Desliguei a água e sequei minhas mãos numa toalha de papel, ainda o ignorando.
_Não vai responder?
_Não lhe devo satisfações da minha vida.
Eu tentava manter o controle, mas aquele ciúme idiota seu me fez lembrar de tudo. Sua dissimulação foi me enchendo de raiva.
_É que eu acho muito estranho, duas pessoas tão diferentes que de repente se tornam amigas, sabe?_ sua voz tinha uma pitada de descontrole.
_Bom, eu acho que descobrimos algo que tínhamos em comum no último sábado._ respondi.
Eu não era muito dado a acessos de raiva ou revanchismo, mas não posso negar o quanto eu me senti bem ao vê-lo ser atingido pelas minhas palavras. Ele realmente não esperava uma reação mais agressiva vinda de mim. Talvez de Rafael, mas não de mim. Ele tentou fingir que se recuperou.
_Olha quem está mostrando as garras!
_Combina com meus novos chifres.
Olhei para ele e notei que seus olhos estavam cheio de lágrimas. Ele estava ferido, mas continuava lutando para sair por cima naquele embate e assim começar a discutir sobre seu erro. Mas ele pareceu desistir dessa estratégia:
_Bernardo, por favor, me escuta...
_Não._ o interrompi _Já ouvi tudo o que eu tinha para escutar.
_Olha, eu não estou mais com ele, nós terminamos ontem!
Eu ri custando a acreditar que ouvi aquilo.
_ELE terminou com você ontem!_ falei num raro acesso de raiva _Ele ouviu nossa conversa no sábado e depois nós dois tivemos um papo bem proveitoso, sabe?
Seus olhos se arregalaram e sua pele conseguiu ficar ainda mais branca que o de costume.
_Escute bem, Eric._ falei tentando controlar minha voz para não gritar e chamar atenção _Eu não quero mais você na minha vida. Se vamos mesmo ter que conviver pelos próximos cinco anos, que seja com o mínimo de contato possível. Dispenso até o seu bom dia. E me arrisco a dizer que Rafael espera o mesmo de você. Agora, com licença que eu tenho pessoas melhores para conversar durante o intervalo.
Saí do banheiro sem esperar por uma reação sua, mas se fechasse meus olhos, ainda conseguia ver as lágrimas descendo pelo seu rosto, os olhos fundos, tristes e vermelhos, e sua expressão de dor. Eu não tinha mais pena dele. Eu estava sentindo uma mistura venenosa de mágoa e raiva. Agora eu queria mesmo aquela vingança!
Meu avô paterno, seu Aurélio, morreu aos 82 anos, quando eu já tinha XVI. O que sempre gostei nele era sua vitalidade e energia. Até suas broncas eram gostosas de se ouvir. Na última vez que o vi, estávamos passando a páscoa com ele e minha avó no sítio para o qual tinham se mudado depois de se aposentarem. Meus pais estavam me pressionando para eu escolher logo meu curso para o vestibular, e eu tentava lhes explicar como eu imaginava minha vida no futuro, como ela não combinaria com as grandes responsabilidades de um médico, com a seriedade de um advogado ou com a falta de tempo de um administrador de empresas, então meu avô veio com um dos mais sábios conselhos que já recebi
_ Não faça faça planos para o futuro! É uma idiotice. Tudo o que eles vão lhe render são frustrações por não se cumprirem. Você acha que eu planejei isso aqui, um fim de semana com quatro filhos, dez netos e um bisneto num sítio aos oitenta e dois anos de idade? Não, eu apenas deixei a vida ir me guiando. Você tirou uma foto do seu futuro e está tentando chegar lá de qualquer jeito, a todo custo. Não pode, está errado, isso vai te deixar infeliz. Aprenda a viver com o que a vida lhe dá. É o que eu faço!
Infelizmente a vida lhe deu um câncer de próstata que ele escondeu de todos até poucos dias antes de sua morte. Mas sim, foi um dos conselhos mais lúcidos que já recebi: não faça planos. Porém eu tive que apanhar muito da vida para dar valor a esse conselho. Tive que fazer planos e me ver fracassando neles para aprender. Aos recém completados dezoito anos, eu ainda teimava em fazer planos. Quem me dera ter dado ouvido ao conselho de vovô e ter me negado a ser cúmplice nos planos de Pedro e Rafael. Planos esses que, diga-se de passagem, fariam de mim sua maior vítima.
_Então como vai ser?_ perguntou Pedro que me abordara quando eu me dirigia à lanchonete da faculdade.
_Ainda não tive tempo de pensar nisso, mas o primeiro movimento vai ter que ser meu. Eu vou ter que falar com Alice que você está mudando por ela e tal. Você tem que se manter afastado dela por enquanto, sufocá-la com sua presença é garantia de erro. Quando chegar a hora de você entrar em ação, eu te aviso.
_Acha que isso vai dar certo?
_É sua melhor chance. Ela tem uma má impressão sua e uma má impressão não some de um dia para o outro.
_E para isso eu vou ter que fingir que simpatizo com viados?
Meu corpo inteiro tremia quando ele soltava esse tipo de comentário. Eu já não estava no meu melhor estado depois de ter conversado com Eric, eu estava mais frágil que o de costume.
_É, Pedro, você vai ter que fingir isso, sim.
_É por uma boa causa, né?
_Aham.
Ainda não estava muito claro na minha cabeça como eu faria para fazer Alice acreditar em Pedro. Ela não era boba, uma mentira à toa não ia convencê-la. O plano estava começando a ser formar na minha cabeça.
Meu próximo passo era conversar com Alice e Rafael. Fui procurá-los e estavam sentados juntos num dos bancos próximos à lanchonete. Era engraçado de ser ver de longe: os dois não se falavam, estavam sentados lado a lado olhando para o nada. Me aproximei e os dois se levantaram juntos. Rafael ia começar a falar, mas eu o interrompi:
_Sim, ela sabe da existência de um plano de vingança. E sim, ela é confiável.
Ele tornou a fechar a boca. Alice então começou a falar:
_Devo supor que essa amizade repentina é parte do plano?
Tínhamos o cuidado de falar baixo para ninguém nos ouvir.
_Sim, é parte do plano.
Ela ficou esperando que eu continuasse e contasse o resto do plano. Suspirei e contei:
_Vamos fazer ciúmes em Eric.
_Isso é o grande plano de vocês? Fazer ciúme nele? Nossa, vocês são verdadeiros gênios do mal!_ falou irônica.
_E um belo dia,_ completou Rafael _ele vai nos flagrar nos beijando. Vamos fazê-lo pensar que eu e Bernardo estamos juntos.
Alice olhava de mim para Rafael tentando absorver a informação. Estava bem claro para mim que ela desaprovava o que estávamos fazendo.
_Vocês têm merda na cabeça? Por que simplesmente não seguem com suas vidas? O chifre tá doendo tanto assim?
_Ele merece pelo que nos fez!_ bradou Rafael.
_E agora eu realmente quero me vingar._ comentei e os dois olharam para mim _Ele me abordou agora no banheiro sobre nossa repentina amizade. Vocês não conseguem imaginar o nível da dissimulação dele. Chegou ao ponto de quase se fazer de vítima. Eu agora estou cheio de mágoa e raiva, essa revanche vai ser boa para extravasar isso.
_Ele teve coragem de vir falar com você?!_ perguntou Rafael e afirmei com a cabeça.
_Incrível!_ completou.
_Bernardo, me escute._ falou Alice bem séria desta vez _Você acha que isso vai acabar bem? Principalmente para você?
Eu sabia que ela estava se referindo à minha confusão mental em relação à minha sexualidade. Lógico que aquilo ia mexer comigo, mas eu queria correr o risco. Reproduzi para ela a mesma mentira que eu estava dizendo para mim mesmo:
_Vai ser só um beijo, nada mais.
Ela me olhou como se duvidasse seriamente que a coisa acabaria ali. Rafael se intrometeu:
_O que é um peido para quem já está todo cagado?
Nós dois olhamos para não acreditando na idiotice que ele tinha acabado de falar. Ele percebeu e se encolheu como em um pedido de desculpa.
_Bernardo, estou falando sério. Isso não vai acabar bem, principalmente para você.
_Eu vou correr o risco, Alice. Agora, se me dão licença, vou comer alguma coisa porque estou faminto.
Falei tentando encerrar a discussão com Alice. Ela tinha poder para me fazer mudar de idéia, era melhor evitar o assunto com ela por enquanto. Comprei meu lanche e voltei para onde eles estavam. Como estavam de costas, não me viram chegar e peguei o finalzinho de sua conversa.
_...em resumo, se você machucar o Bernardo, você vai se ver comigo, entendeu?_ falou Alice num tom ameaçador para Rafael.
Achei bonitinha a preocupação de Alice comigo, mas não a entendi. Como Rafael poderia me machucar? Eu estava tão cego, não via as coisas que derivariam daquele plano. Alice sim, ela previu tudo o que aconteceria conosco.
_Falando sobre mim?_ perguntei os assustando.
_Não, apenas comentando que o intervalo acabou, temos que voltar para a sala._ respondeu Alice se recompondo.
_Ok, então vamos.
Rafael nos acompanhou, mas foi calado, pensativo. Parecia ter levado a sério a ameaça de Alice.
[...]
As semanas foram se arrastando e aqueles planos iam sendo levados em frente. Rafael insistia que Eric devia ser pego de surpresa, por isso devíamos dar um tempo até ele se acostumar com nossa amizade. Ele tinha que acreditar que éramos namorados e estávamos juntos há algum tempo. Confesso que esse plano me provocava reações diversas. Eu ficava com raiva de Eric por tudo o que ele tinha feito, depois satisfeito por estar me vingando, para então me sentir culpado por fazê-lo sofrer e por fim estranhamente feliz. Eu não sabia a razão daquela felicidade, daquela leveza que eu sentia, daquela repentina vontade de sorrir que me vinha em momentos diversos do dia. Eu não associei aquilo ao fato de Rafael estar sempre nos meus pensamentos. Para mim, eu pensava muito nele por estarmos muito próximos nas últimas semanas, sempre sentando juntos e nos mesmos grupos de trabalho. Pela primeira vez em anos, eu estava feliz, mas não sabia explicar por quê. Eu ignorava o porquê.
Se numa frente a estratégia estava bem definida, na outra eu sofria com a resistência do inimigo. Alice não comprava a idéia da redenção de Pedro, por mais que eu tentasse introduzir isso delicadamente na sua cabeça. Eu tentava enganá-la falando que Pedro não era homofóbico, que aquela era só uma postura que ele adotava em frente aos seus amigos como forma de piada, mas ela não acreditava. Dizia que eu estava me enganando, que eu queria ver um lado bom em Pedro que não existia. Juntá-los nos mais diversos programas como bares ou trabalhos de faculdade também não funcionava. Sempre que ele se dirigia a ela, Alice o cortava e começava um papo com outra pessoa na mesa. O pior disso era ver a cara de tristeza e frustração de Pedro toda vez que isso acontecia. Rafael percebeu que algo estranho estava acontecendo e veio me perguntar. Não vi motivos para não, então lhe contei do “plano” de Pedro.
_Não acho que isso vá dá certo..._ comentou quando terminei.
_É, Alice é osso duro de roer.
_Você sabe que se um dia isso vazar você tá ferrado, né?
_Por que?
_Uai, imagina qual vai ser a reação dela quando descobrir que você está agindo pelas suas costas.
Eu já tinha pensado nisso, mas me tranqüilizava mentindo para mim que ela nunca descobriria.
_Eu sei, mas ela não vai descobrir. Você não vai contar, né?
_Não, de jeito nenhum, não é da minha conta.
_Obrigado.
Caminhávamos em silêncio lado a lado em direção a saída da faculdade. Eu não sabia explicar como eu conseguia me sentir bem em silêncio. Como a simples presença dele podia me fazer sentir daquele jeito? Cego para o que estava acontecendo, atribuí aquele sentimento à magia natural que Rafael envolvia as pessoas.
_E por que você está ajudando ele?
_Como assim?
_Ele é homofóbico e você é...
Ele se interrompeu antes de terminar a frase se lembrando que eu não estava confortável com aquela questão. Para poupá-lo de um constrangimento maior, respondi sua pergunta mesmo estando pela metade:
_Sei lá, às vezes acho que consigo ver alguma coisa em Pedro que só eu vejo, sabe? Ele é uma boa pessoa. E é apaixonado por Alice. Tudo o que ela tem que fazer é dar uma chance a ele.
Ele pareceu pensativo por instante antes de voltar a falar.
_Vou ter que confiar em você que ele é uma boa pessoa.
_Por que?
_Porque estou tentado a te ajudar nisso.
_Como?
_Eu tenho um plano, e pode ser que dê certo.
_Por favor me conte, porque tudo o que eu tento dá errado.
_Bom, vamos marcar de sairmos eu, você, Alice e Pedro.
_Ok..._ respondi tentando ignorar como aquilo soou como programa de casais.
_E, sei lá, eu vou começar a falar mal do Eric.
_Hã?
_Vai escutando. Eu vou falar mal do Eric, falar que, sei lá, ele tentou dar em cima de mim e depois xingá-lo. Então vamos combinar com Pedro dele ser a pessoa que vai defendê-lo aos olhos de Alice.
_Ela vai desconfiar ao ver você xingando Eric.
_Ela vai pensar que é a mesma mágoa e raiva de sempre.
_Ai, Rafael, não sei...
_Eu acho que pode dar certo.
_É muito arriscado...
_Sim, mas se você estiver certo, se os dois podem dar certo juntos, vai valer a pena, não?
_Talvez...
_Então?
_Ok, ok, vamos seguir seu plano. Amanhã você está livre?
_Estou.
_Então combinado. Vou falar com Pedro e Alice quando chegar em casa.
Quando me dei conta, já tínhamos chegado ao seu carro.
_Quer uma carona?_perguntou.
_Não, obrigado, estou indo para o dentista, não para casa.
_Você que sabe.
_Então...
Era comum eu ficar sem jeito com ele, sem saber o que falar ou fazer em seguida. E às vezes ele parecia ficar do mesmo jeito. Ficávamos feito bobos olhando um pro outro, pensando no que fazer.
_Até amanhã.
_Até.
Fui me despedir dele com um aperto de mão, mas ele me puxou para um abraço desajeitado que juntos nossos corpos. Senti o coração dele bater forte contra o meu. Os dois pareciam em sintonia, batiam juntos. Então eu me peguei me sentindo diferente de qualquer jeito que já me senti na vida. Eu me senti cheio de alegria, quente, feliz... Suas mãos deslizaram suavemente pelas minhas costas antes de me soltar. Nossos olhares se cruzaram e eu pude ver em seus olhos um brilho diferente. Talvez fosse o mesmo brilho que eu trazia nos meus olhos. Ele então entrou no carro e partiu, me deixando ali parado com borboletas no estômago. Só ali eu percebi que algo fora do planejado estava acontecendo. Só ali eu percebi que estava me apaixonando por Rafael.
Meu avô gostava muito também de uma frase que só aprendi a valorizar mais tarde. Vovô dizia:
_Bernardo, Bernardo... Você não faz planos para o futuro, é o futuro que faz planos para você!
E assim foi...