Lígia e eu trocávamos saliva na cama do meu quarto, quando o meu celular tocou. Ignorei-o por um segundo para sentir mais um pouco do gosto dela na minha boca, mas o celular teimava a nos atrapalhar. Minha namorada, então, me largou e pediu pra eu verificar quem telefonava. Era Júlio, meu melhor amigo. Já havia um bom tempo que ele não me ligava. Com um celinho, Lígia me deixou atender o telefone. Levantei-me dá cama abanando a camisa para disfarçar o calor e cliquei na tela do aparelho.
- Fala, seu Panaca! – cumprimentei-o amigavelmente. – Você tá sumido, hein!
- Thomaz, preciso falar com você agora. – anunciou, seriamente.
- Pedindo desse jeito, é claro que...
- Eu não tô brincando, cara. Preciso falar com você e tem que ser agora. – repetiu, tenso.
- Cara, você parece apreensivo. Tá me deixando preocupado. – comentei, sentando-me na cama. Lígia me olha com curiosidade.
- Preciso me encontrar com você agora. Aqui na praça do conjunto.
- Tudo bem, eu... – e ele desligou. Lancei a Lígia um olhar confuso e disse a ela que eu teria que descer para encontrar Júlio na praça do conjunto. Aproximei-me dela e a beijei nos lábios.
- Eu preferia continuar te beijando, gata, mas... – respirei fundo e continuei. – Achei Júlio tão estranho. Fiquei preocupado.
- Então desça e vá lá com seu amigo. – incentivou-me, beijando-me rapidamente.
- Vou mesmo. Fiquei preocupado com o Júlio. Será que aconteceu algo com os pais dele?
- Não sei. Vá lá e depois você me conta, se puder. – Lígia me beijou de novo e se levantou da cama. Mas antes de eu abrir a porta para sairmos, encostei-a na parede e beijei novamente, porém com mais intensidade e fervor. Os lábios dela me enchiam de tesão, assim como qualquer outra parte de seu corpo. Mas os lábios eram meu fascínio. Ela riu e disse para descermos.
Peguei o meu chaveiro que estava em cima da mesa, coloquei-o no bolso e descemos. Como despedida, abracei Lívia e a beijei de novo. Acompanhei com os olhos minha namorada saindo pelo portão do conjunto e segui à praça. Encontrei meu amigo sentado no chão do coreto, cabisbaixo. Levantou a cabeça e me enxergou: notei um temor nele. Normalmente, eu o encontrava em pé e com um sorriso jocoso no rosto e se estivesse sentado, estaria lendo algum livro. Mas não o via com aquela expressão taciturna havia muito tempo. Realmente, Júlio estava esquisito. Ou ao menos, preocupado. Das duas, uma: ou ele fez alguma besteira ou algo de ruim aconteceu com os pais dele. Eu tinha quase certeza que era a segunda opção, devido a aparência dele. E seria melhor que eu estivesse errado.
Sentei-me ao lado de Júlio, no chão sujo do coreto, e perguntei, tentando ser engraçado:
- Espero que você tenha um bom motivo pra ter me tirado dos meus amassos com a Lígia.
No entanto, Júlio não esboçou nenhum sorriso. Ele apenas me olhou e tapou o rosto com as duas mãos. Seus cabelos loiros e bagunçados eram só o que eu podia ver, pois suas mãos cobriam toda a sua cara. Eu definitivamente estava ficando preocupado. Meu amigo não falava nada. Absolutamente nada. Se ele não abrisse logo a boca para me dizer o que tanto o atormentava quem ficaria atormentado seria eu.
- Ei! – gritei, empurrando-o. – O que tá acontecendo? No telefone você parecia sério e aqui tu estás com uma cara de assustado. O que houve? – perguntei, agoniado. Mas Júlio nem mexia a boca e nem piscava os olhos. – Caralho, diz logo! Aconteceu alguma coisa com teus pais? Eles estão bem? Estão doentes?
- Eles estão bem. – quase inaudível.
- Ótimo. Você abriu a boca. Mas se eles estão bem... – movimentei as mãos, pedindo que ele dissesse mais. Júlio era falador. Sua língua enrolava de tanto que ele falava e eu raramente o havia nervoso ou sem graça. Algo de muito sério acontecia com ele. Mas, pelo visto, eu teria que adivinhar o que estava acontecendo. – Bom, se seus pais estão bem... Então é você? Você está doente? – perguntei, com os olhos arregalados. Não sei o porquê, mas câncer foi a primeira doença que me veio em mente. Acho que seria pelo motivo de que alguns conhecidos meus e até famosos já tinham sido atacados por essa maldita doença.
Por benção divina, Júlio balançou a cabeça negativamente. Nem ele e nem os pais dele estavam doentes. Já era uma boa notícia. Mas ainda não era a notícia, de fato. Pensei mais um pouco para tentar desvendar o tal mistério.
- Cara, você tá usando drogas. É isso? – ele negou outra vez. – Nem um baseado? Não cheirou nada? Porque você tá com uma cara... – tentei brincar, em vão. – Tá, parei... Já sei! Você roubou alguém! Assaltou! – ele novamente fez que não. – Matou! Cara, você matou alguém?! – Júlio montou uma careta de impaciência e recebi outro não. Porém, além de preocupado, curioso, eu já estava ficando com medo. Desesperado, perguntei aos berros:
- Porra, diz logo o que é!
- Eu sou gay. É isso. Pronto. Sou gay. Falei. – Júlio soltou, quase sem parar. Ele estava trêmulo. Era como se realmente tivesse cometido algum tipo de crime ou tivesse sido atingido por alguma grave doença. Mas não. Era gay.
- Gay? – perguntei, incrédulo. De fato, também fiquei um pouco espantado com a revelação. Conhecíamo-nos há quase dez anos e repentinamente meu melhor amigo me dizia que era gay. Não era nada de mais, porém ainda assim eu estava surpreso. – Gay? – repeti a pergunta. Só então caiu a minha ficha: Júlio me tirou de uns bons beijos com minha namorada, me fez pensar que algo de ruim estivesse acontecendo com ele unicamente para me contar que gostava de garotos.
- Na verdade, não. Sou bi. Bissexual. Eu também gosto de garotas. Gosto de garotas, viu? Não é tão ruim assim. – Júlio tentava um sorriso forçado e ainda bastante nervoso. Bissexual ou gay, não fazia diferença. Júlio e eu éramos amigos desde os nossos seis anos e só com os nossos dezesseis que ele foi me revelar a sua verdadeira opção sexual. Ou orientação, eu não sabia o termo correto.
- Há quanto tempo você percebeu que é bissexual? – perguntei, curioso. Na verdade, fiz essa pergunta para tentar aliviar a raiva que eu começava a sentir por ele naquele momento.
- Bom, acho que desde sempre. – Júlio respondeu, pensativo.
- Desde sempre? Isso quer dizer que quando nós nos conhecemos você acha gostava de garotos?
- Sim. Na verdade, eu não tinha muita certeza. Eu estava meio confuso e... – ele iniciou uma explicação, mas eu o cortei.
- E você resolveu me contar só agora?
- É... – respondeu, sem jeito. – Eu precisava contar pra alguém, desabafar. Eu não aguentava mais guardar isso só pra mim, Thomaz. – ele olhava para a parede a nossa frente. Eu não fazia ideia da barra que meu amigo estava passando, mas ainda assim me senti um pouco traído. Por que diabos Júlio não desabafou comigo antes?
- E por que só agora você resolveu me contar? Por que não me contou logo?
- Porque eu não... Eu não... – Júlio me olhou com estranheza e perguntou: - Espere aí: você não tá chateado por eu ser gay?
- Estou chateado porque você demorou anos para me contar. – fui franco. – Eu te conto todos os meus segredos, seu panaca! Te contei até como foi a minha primeira vez com a Lígia. E ela nem sonha com isso! E o seu segredo mais íntimo você resolve me confidenciar quase dez anos depois de amizade! Isso foi sacanagem.
- Eu pensei que você fosse achar ruim de ter um amigo gay. – confessou, tímido, mas já nem tanto nervoso. – Aliás, pensei que você não fosse gostar de ter um melhor amigo gay.
Admito que me senti um pouco ofendido com o comentário de Júlio. Como ele poderia pensar que eu teria tamanho preconceito? Apesar disso, era compreensível o receio dele. Se eu, seu melhor amigo, não o apoiasse, ele deveria se sentir muito mal. Só ele sabia a angústia pela qual estava passando, e não seria eu quem iria julgá-lo.
Realmente, eu não tinha nenhum amigo gay e ninguém da minha família era. Ou ao menos não que eu soubesse. Os únicos gays ou bissexuais que conhecia estavam filmes ou novelas. Mas na vida real, nenhum. Para mim era uma novidade. Mas não era uma novidade negativa. Além disso, como eu nunca desconfiei dele? Porém, isso era o de menos naquele momento.
Aproximei-me de Júlio e perguntei:
- E por que você pensou que eu fosse achar ruim de ter um melhor amigo gay?
- Ah Thomaz, não sei... – Júlio respondeu, um pouco nervoso. Para tentar diminuir um pouco a tensão dele, pus meu braço por trás de seu corpo e o trouxe para perto de mim, abraçando-o. – As pessoas têm preconceito com gays. As famílias, amigos também nem sempre apoiam e...
- E por isso você achou que eu seria que nem esses amigos e parentes? Achou que eu iria zoar com a sua cara ou exigir que você se tornasse heterossexual? – Júlio me olhou espantado com a pergunta e não soube o que responder. Com uma mistura de seriedade e brincadeira, falei:
- Sabe de uma coisa? Acho que vai ser até bom ter um amigo gay. – falei, soltando-o.
- Como assim?
- Ah, você é um cara bonito, pô! Eu me sentia um pouco ameaçado indo pras festas com você. Mas só um pouco, porque eu sou mais bonito que você, claro. E eu tenho namorada agora e...
- Você não está falando sério. – ele disse, querendo rir.
- Claro que estou, Júlio. Ou vai dizer que eu não sou um cara bonito?
Júlio permaneceu calão, mas sem segurar o sorriso. Senti-me ofendido de novo. Meu amigo gay me achava feio.
- Você tá rindo de quê? Vai dizer que não sou um cara bonito?
- É sim... – respondeu, mais à vontade. – Claro que é.
- Então por que você ficou rindo da minha cara?
- Eu fiquei sem graça, caramba! – respondeu, tapando o rosto. – Mas você é um cara bonito, sim. E muito. – elogiou-me com sinceridade e olhando-me nos olhos. Júlio, enfim, estava mais tranquilo, e eu me sentindo um pouco sem graça. Acho que era a primeira vez que um garoto me enaltecia.
- Essa eu tenho que contar pra Lígia. – lembrei-me, pegando meu celular. Assustando, Júlio tirou o celular de minha mão e disse:
- Não! Você tá querendo contar a ela o que nós conversamos aqui? – eu assenti – Isso é segredo nosso! Ninguém sabe. Ninguém. Só você. – enfatizou, com firmeza.
- Então eu sou a única pessoa que sabe de você? – perguntei, sentindo-me lisonjeado.
- Você... E os garotos com quem fiquei.
- Você já ficou com garotos? – não sei por que levei um susto com aquela informação tão óbvia. E Júlio me respondeu de um jeito como se eu tivesse feito uma pergunta realmente idiota. E foi uma pergunta idiota.
- Claro que eu já fiquei com garotos, Thomaz. Como você acha que eu sei que sou bi?!
- Caraca! É verdade. – levantei-me animado e falei: - Vamos comer alguma coisa na lanchonete aqui ao lado e você me conta dos seus peguetes.
- Ah, eu não vou contar nada. – Júlio negou, levantando-se também. Mas ele logo mudou de ideia quando eu avisei que iria pagar o lanche. – Nesse caso, eu posso pensar no seu caso...
Júlio e eu fomos à lanchonete e comemos, cada um, dois x-burgueres e um refrigerante. Eu estava faminto. Na conversa que nós tivemos eu pude perceber que nossa intimidade aumentava gradativamente e a amizade se fortalecia. Júlio deixou o nervosismo de lado e não hesitava em revelar seus segredos mais íntimos. Mas parava quando eu pedia. Eu não tinha preconceitos, mas detalhes sórdidos eu evitava.
E Júlio se enganou por completo: não vi nada de errado em ter um amigo que gostasse de meninos. Mas uma coisa era certa: nossa amizade mudou totalmente.
Parabéns pelo conto, muito bem escrito. Estou esperando a continuação!
Acho meio clichê essa historia de se apaixonar pelo amigo hetero e tals, mais gostei do conto e estou aguardando continuação
Brother, vc escreve muito bem! Não é sexualmente explícito mas deixa muito curioso... afinal, se não vai rolar nenhuma sacanagem entre Júlio e Thomás, cê não escreveria aqui rsrsrs Aguardando o próximo episódio, não demora hein