02. Sem graça

Thomaz

    De castigo, eu não poderia sair de casa enquanto não terminasse a semana provas. Seriam duas avaliações de disciplinas diferentes por dia, com quatro questões discursivas. Matemática e Física eram duas das matérias que eu menos me preocupava. Para ser franco, eu era um dos melhores da classe quando se tratava de cálculo. Porém, se o assunto era Literatura ou Redação eu era um verdadeiro desastre. E uma das vantagens em ter Júlio como amigo era essa: as suas melhores notas eram nessas disciplinas, sem contar Língua Portuguesa. Nessa, no entanto, eu não estava tão ferrado.
    Outra grande qualidade de Júlio era sua paciência. Enquanto muitas pessoas se enfureciam num piscar, ele permanecia na mesma: sorrindo feito um babaca. Eu era amigo dele havia pelo menos dez anos e eu ainda não sabia como irritá-lo. Era o tipo de pessoa que explicaria a mesma coisa várias vezes, se fosse necessário; como por exemplo, me esclarecer a diferença entre Romantismo e Realismo, e entre Canções de Amor e Cantigas de Amigo. Enfim, qualquer coisa que remeta a Literatura. Se eu não tirasse uma ótima nota naquelas últimas provas eu teria que fazer uma prova substitutiva, que era sinônimo de uma reprovação. E seria, também, o mesmo que pedir para ficar de castigo por um mês. Meus pais ficariam sem me dar dinheiro até meu aniversário, que seria dali a um mês, em dezembro. Então, a minha única opção era estudar com afinco.
    Dois dias depois de Júlio ter me confessado sua orientação sexual, pedi a ele, na segunda-feira, que fosse até a minha casa para estudarmos para as provas finais. Quatro horas de aula, foi o que ele propôs. Ou nada feito. Decidimos que nas duas primeiras horas de aula ele me ajudaria com Literatura e Redação e nas outras duas eu tiraria as dúvidas em matemática. Embora Júlio não fosse um aluno exemplar nessa disciplina, as notas dele não estavam tão baixas quanto as minhas. Quem necessitava de umas aulas particulares com urgência era eu. E, como era de se imaginar, meu amigo não negou meu socorro e foi à minha casa logo após o almoço, na segunda-feira. Como normalmente fazíamos, estudamos na sala e com muita tranquilidade. Mas na manhã do dia seguinte, minha mãe me avisou que ela iria ajudar nossa diarista na faxina da casa e ordenou que o estudo daquela tarde fosse no meu quarto.
    Convidei Júlio, por sugestão de minha mãe, para almoçar em casa, pois assim nós teríamos mais tempo para estudar. E assim que acabamos de comer, fomos para o meu quarto para iniciarmos o estudo. Minha mãe, logo que entramos, bateu a porta do meu quarto e sem esperar resposta, abriu e, com uma toalha branca nas mãos, disse:
    - Júlio, trouxe uma toalha para você.
    - Por que, tia Neuza? – perguntou Júlio, colocando sua mochila na minha escrivaninha.
    - Para você ir tomar banho, ora. Depois de um banho, vocês podem estudar. – respondeu, jogando a toalha nas mãos dele e saiu do quarto. Júlio aceitou e foi até a porta, mas antes de abri-la, pedi para que me esperasse. Entreguei a ele um short e uma camisa minha para que ele usasse depois do banho. Agradeceu e saiu do quarto.
    Enquanto Júlio tomava banho, tirei o uniforme do colégio e cobri minha cintura com minha toalha. Minha mochila estava uma desordem total e muito do que havia dentro dela eram papeis e boa parte eram rabiscos de redações. Escolhi a que parecia ser a maia aceitável para que Júlio desse uma olhada para mim e coloquei em cima da escrivaninha. E em poucos minutos ele apareceu no quarto, já usando as minhas roupas.
    - Essa camisa tá apertada em você. – comentei, já que não era a primeira vez que eu emprestava aquela roupa para ele. – Acho que você engordou uns quilinhos. – falei, rindo.
    - Estou ficando forte, isso sim. – Júlio rebateu e eu saí do quarto.
    Júlio já estava debruçado em seu caderno quando entrei no meu quarto. Mal me olhou e voltou a se concentrar na leitura.             Outro caderno e uns papeis avulsos também já estavam em cima da escrivaninha, formando uma pequena bagunça. Isso era uma amostra de que estudaríamos mais que o normal naquela tarde. Vesti minha cueca e depois um short, mas preferi ficar sem camisa: eu não iria ligar o ar-condicionado porque Júlio sentia frio com muita facilidade, e como ele já estava tirando do seu tempo para me ajudar, dei preferência a ele e liguei somente o ventilador. Mas o vento sozinho não seria o suficiente para amenizar o calor, então optei por não usar camiseta alguma.
Saí do quarto e voltei com uma cadeira da cozinha, para que nós dois pudéssemos utilizar a escrivaninha. Sentado ao lado de Júlio, falei:
    - Cara, hoje eu quero que você analise uma redação minha. – foi como me comunicar com a parede. Ignorado pelo meu melhor amigo e seu caderno, mas sou persistente. – Ei, Júlio. Tô falando com você. – e bati no ombro dele. Júlio, finalmente, me deu atenção. Mas notei um olhar de espanto nele quando me viu. Seus olhos se arregalaram por alguns segundos e, um pouco corado, voltou a dar atenção ao caderno.
    - O que você falou? – sem me encarar, Júlio inquiriu.
    - Pedi pra você ler uma redação que fiz hoje. – repeti e entreguei a ele a folha que eu havia separado. Júlio a pegou e iniciou a leitura. E surgiu uma preocupação quando meu amigo pegou uma caneta vermelha e não parava de rasurar minha prova. Erros e mais erros. A minha redação teria que ser refeita.
    Ainda evitando me encarar, quase dez minutos minutos depois, Júlio me entregou a folha. Havia vários pontos, círculos em vermelho, anotações por todos os cantos do papel. Nervoso, perguntei:
    - Tá tão ruim assim?
    - São só algumas anotações. – ele respondeu, ainda sem me olhar. E intrigado, perguntei:
    - Por que você tá evitando me encarar? – eu o tentava olhar nos olhos. Incomodado, fui até Júlio e fiquei na frente dele. Tive que trazer seu rosto ao meu na marra. – O que tá acontecendo? Eu fiz alguma coisa de errado?
    - Na verdade fez. – Júlio estava totalmente sem jeito.
    - Então, me diz o que foi.
Rendendo-se, me olhou de frente e assumiu:
    - Você tá sem camisa, Thomaz. Não consigo tirar os olhos de você.
    - Como é que é? – eu estava pasmo. Júlio era bissexual. Sentia atrações por garotos, também. Havia uns quatro dias que ele se revelou para mim, nervoso como eu nunca o vira antes. Depois de admitir sua orientação sexual, fomos à lanchonete mais próxima e paguei um sanduíche para nós dois. Contudo, aos poucos Júlio deixou de ser o assunto e passamos a falar sobre mim e Lígia e da vontade que estávamos de tomar uma vodca. E desde então eu não me lembrava que meu melhor amigo era gay, porque eu não tinha preconceitos nenhum com homossexuais ou lésbicas, embora eu não tivesse contato com nenhum antes. Mas ouvir que Júlio “não conseguia tirar os olhos de mim” por eu estar sem camisa me deixou perplexo. Assustado.
Com um sorriso faceiro, Júlio me respondeu:
    - É, cara. Não dá pra tirar os olhos de você.
    - Por que? – eu olhava meu corpo. Eu não era magricela ou esmirrado. Acho até que os bons treinos de futebol estavam me dando um ótimo resultado. Mas ainda era estranho...
    - Thomaz, você tem um corpo bonito, cara. Não se faça de besta. – com rispidez, voltando para o caderno. Mas não o deixei que retornasse o estudo até que encerrássemos aquele assunto e tirei o material de sua frente, jogando-o na cama.
    - Como assim “você tem um corpo bonito”? – pergunte, ainda incrédulo e ansioso para uma resposta.
    - Bonito, cara. Atraente.
    - Eu sei o que significa, mas... – eu disse, confuso. – Nós estudamos e convivemos juntos há muito tempo e você já me viu sem camisa várias vezes, até mesmo de cueca, e nunca te vi me olhando desse jeito.
    - Porque você é muito panaca. – Júlio disse, acomodando-se na cadeira. – Eu sempre te olhei assim. Não tinha como não admirar seu corpo, cara. Você é... Você é um tesão. Pronto, falei.
    Acho que nunca ouvi algo mais estranho. Meu melhor amigo disse que eu era um tesão. Ou eu estava ouvindo coisas ou ele não dizia coisa com coisa. E naquele instante, Júlio e eu tínhamos algo em comum: ambos estavam realmente sem jeito.
    - Como eu nunca notei você... – comecei.
    - Você nunca percebeu que eu ficava sem jeito por dois motivos: você é distraído e porque agora você já sabe que eu gosto de garotos. Por isso. – explicou, com um sorriso tímido. – Mas, Thomaz... – Júlio, ainda mais sem graça que antes, levantou-se da cadeira. – Falei bobagem, me desculpa. E eu vou embora, acho que é melhor...
    - Não vai nada. A gente nem começou a estudar. – eu puxei de volta para a cadeira.
    - Você vai ficar estranho comigo, Thomaz. – ele temeu, aflito.
    - Não vou não, Júlio. Já disse isso. Não muda em nada entre a gente. – fui veemente, segurando no ombro dele. Júlio esboçou um sorriso mais leve. Até que me veio uma curiosidade. – Cara, vou te fazer uma pergunta íntima. Você responde se quiser.
    - Diga lá.
    - Você já transou com homens? – fui direto. Júlio olhou para os lados, como se tentasse fugir da conversa. – A gente mal falou sobre isso aquele dia e agora tá me batendo a curiosidade. Isso vai ficar só entre a gente, você sabe.
    - Cara...
Antes que Júlio começasse a falar, levantei-me, fui até a porta e a tranquei. Não ia ser legal se minha mãe ou nossa diarista aparecesse no meu quarto naquela hora. Pior seria se meu pai aparecesse, mas, por sorte, ele só chegava depois das seis da tarde em casa.
    Fiquei de frente a ele, esperando a resposta.
    - Não, nunca transei. – Júlio respondeu, de braços cruzados. – Só fiquei apenas. Com alguns.
    - E quantos anos você tinha quando beijou um cara?
    - 14 anos.
    - Isso faz dois anos... E você não tem vontade de transar com um cara?
    - Claro que tenho.
    - E com uma garota?
    Júlio demorou um pouco a responder.
    - Nem tanto.
    Havia, repentinamente, muitas perguntas mergulhando nas águas da minha mente. Muitas. E eu me afogava em cada uma delas. Cada dúvida formava uma gota. Eu estava encharcado. Mas não sabia qual pergunta fazer em seguida.
    - Então... Você me acha um cara bonito? – tentando me sentir a vontade com o assunto.
    - Posso ser sincero? – ele se aproximou de mim.
    - Deve. – seriamente.
    - Tenho um pouco de inveja da Lígia.
    - Inveja?
    - Sim.
    - Por que?
    - Vou ser sincero: você é meu melhor amigo desde que tínhamos seis anos de idade. Mas já tem um tempinho que venho sentido uma... Tara por você.
    - Por mim? – era bizarro demais para se acreditar no que eu ouvia.
    - Sim. Não estou dizendo que estou a fim ou apaixonado por você, Thomaz. Mas você é um cara muito bonito, e tá um com um corpo de tirar o fôlego! É difícil ficar centrado quando se está ao seu lado, fica ruim de disfarçar. Mas eu sou seu amigo. E se eu fizer ou falar alguma bobagem você vai se chatear e com razão. Não posso te desrespeitar. Aliás, acho até que já falei demais...
Fiquei em silêncio ao ouvir essa confissão. Foi uma surpresa. Um choque. E eu tinha que me acostumar, já a nossa amizade não iria mudar unicamente porque meu melhor amigo tinha uma tara por mim.
    - Agora, ponha uma camisa, se você quiser. Vamos estudar e esquecer esse assunto. – Júlio pediu.
    - Não.
    - Não vamos estudar?
    - Não vou por camisa. Assim fico mais confortável.
Conformado, ele respirou fundo e trouxe o caderno de volta. Júlio corrigiu a redação que eu havia feito e fez todos os comentários possíveis sobre ela. Levei um cinco. E nem foi uma nota tão baixa. Estudamos um pouco de Literatura e avançamos para Física. Termodinâmica era um assunto que cairia nas provas finais e ele desejava a melhor das notas. Seu objetivo era de entrar no terceiro ano sabendo tudo e sem nenhuma nota baixa. Nem paramos para um lanche. E durante esse tempo todo não falamos mais sobre meu corpo atraente ou sua orientação sexual. Tínhamos que ter foco nos estudos.
Quando já passava das seis da tarde, finalizamos os estudos e, se os pais dele não se chateassem (principalmente o padrasto) nos encontraríamos no dia seguinte. Júlio guardou seu material na mochila e pegou seu uniforme, dizendo que iria se trocar no banheiro, para devolver minha roupa.
    - Não precisa devolver nada. – falei.
    - Precisa sim.
    - É sério...
    - Eu também falo sério. Vou tentar trazer uma roupa de casa, mas seu esquecer, deixe a sua aqui e eu a uso amanhã de novo, então. – ele propôs.
    - Tudo bem. – concordei. - Mas não precisa trocar de roupa do banheiro. Troca aqui mesmo.
    - Está certo.
    Júlio tirou a camisa e depois o short. Propositalmente, observei seu corpo. Ele também era magro e um pouco mais moreno que eu, porém meu corpo estava um pouco mais definido que o dele. Meu amigo tinha pernas grossas e um pouco peludas. Um rapaz muito bonito, também. E ele merecia um elogio, não só por ter feito um a mim, mas merecia.
    - Você também tem um corpo legal. – enalteci, enquanto ele vestia sua calça jeans. Corado, ele agradeceu. – É verdade.
    - Obrigado, mas você está dizendo isso só porque eu o elogiei mais cedo. - ele contrapôs, vestindo a camisa.
    - Eu sempre te achei boa pinta, mas nunca falei nada.
    - Sei. Tudo bem, então. Vou indo. – e Júlio colocou a mochila nas costas. – Não precisa me acompanhar até a saída. Refaça a sua redação. Ou melhor, escreva outra.
    - Certo.
    Júlio apertou minha mão, e eu o puxei para um abraço, como sempre o fiz. Ele estava quente. Suado. Nossos abraços não duravam dois segundos, mas aquele foi diferente. Com uma intimidade que eu não sabia de onde vinha, sussurrei no ouvido dele:
    - Deixa de lado essa timidez comigo, Júlio. Fica mais a vontade amanhã quando vier aqui. – e sem entender realmente o por que, beijei-o no rosto.
    - Vou ficar, então. Mas não vá se arrepender. – ele piscou para mim.


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Ficha do conto

Foto Perfil Conto Erotico historiasemsegredo

Nome do conto:
02. Sem graça

Codigo do conto:
72060

Categoria:
Gays

Data da Publicação:
10/10/2015

Quant.de Votos:
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