Seu apartamento ficava em uma rua não movimentada, e com poucas árvores. Alguns carros estacionados na rua, e um guarda municipal monitorando a segurança. O som da grande cidade se fazia ouvido, mesmo quando ele fechou a pesada porta branca atrás de nós. A sala de seu apartamento estava organizada. Uma pequena mesa de centro com algumas revidas descansando no vidro. Uma cama de gato, e vários enfeites de times de futebol. No canto esquerdo, próximo à janela de vidro que dava para a rua calma, uma árvore de natal totalmente desatualizada. Segundo ele, simplesmente não tiveram tempo de desmontá-la. A sala se misturava com a cozinha, e as paredes eram pintadas de preto, com pequenas rachaduras e grandes pontos com coloração desigual. Sobre a pia, um pouco de louça suja, e uma lista com lembretes pendurada na parede. A geladeira era vermelha e antiga, com um charme todo especial. Alguns adesivos a faziam ainda mais charmosa.
“Sinta-se em casa” - Disse Andrew enquanto organizava suas chaves sobre a mesa.
“Obrigado. Me dá um pouco de água, por favor” – Pedi educadamente.
“Claro. Vou colocar algo no micro-ondas também. Estou faminto” – Disse já abrindo a geladeira.
No prato, uma lasanha de queijo preparada mais cedo, e ao lado, para celebrar seu trabalho, uma bela lata de coca-cola. Comemos sentados no chão, próximo a tal mesa de centro. Estávamos sob a luz que vinha do lado de fora do apartamento, somados a pouca luz que o quarto emitia com a porta aberta.
Ele falava bastante, e conversamos sobre muita coisa naquela noite. Sóbrio, falamos sobre trabalho, e quão importante era, apesar de estar totalmente infeliz com seu cargo. Sim, era gay, mas vivia dentro do armário para sua família e praticamente todos os seus amigos. Filhos de pastores da igreja batista americana, tinha medo da reação dos seus pais em relação à sua sexualidade. 22 anos, nasceu em Illinois, mas se mudou para Nova Iorque quando conseguiu esse importante emprego. Nunca esteve em um relacionamento gay, e segundo ele mesmo, procurava um grande amor.
Quando finalmente terminou de falar, um silencio pesado tomou conta daquele ambiente.
“Mas me fala um pouco da sua história. O que te deixou tão mal no dia em que nos conhecemos? “ – Perguntou, quebrando o silêncio.
Aquele era o tipo de pergunta que eu me fazia todos os dias. Tentei explicar de maneira clara: Eu me apaixonei por alguém, apostei todas as minhas fichas, criei as maiores expectativas, e acreditei em casa palavra dita por ele. Ele me fez sentir como um homem de valor, e o mais amado entre todos. Ele me fez sentir sexy e desejado. Ainda assim, não teve coragem de dizer que tinha sua vida enrolada com outro homem, e que eu não seria aquele que desenrolaria a situação toda.
Foi menos difícil do que eu imaginava. Tentei não mencionar sobre meu amor por Benjamin, e seu lindo par de olhos verdes. Tinha tomado a decisão de guardar aquela história para mim, e um dia, quando fosse velho, poderia contar a meus netos.
Quando terminei de compartilhar toda a raiva, confusão e tristeza que eu estava sentindo, ele apenas me olhava. Seu olhar era gentil e carinhoso, e eu podia me ver no reflexo de seus óculos. Ele não disse uma única palavra, e sem tirar nos olhos dos seus olhos azuis, senti quando carinhosamente ele tomou a minha mão. Senti calafrios quando ele se aproximou vagarosamente. Com a outra mão, tocou meu cabelo, e tirou a franja que me caia os olhos. Vi quando seus olhos se fecharam, e senti seus lábios encostando os meus. Ficamos alguns segundos apenas com o rosto colado, sem língua ou movimentos. Apenas sentindo sua respiração congestionada com a minha. Sentindo ele próximo a mim. Se eu tivesse dúvidas se ele estava interessado, todas elas caíram em terra, quando sua língua invadiu minha boca, e suas mãos procuravam refúgio em meu cabelo. Eu retribuí. Aquele beijo era quente e envolvente, e senti quando uma de suas mãos me tocou o grande volume da calça.
“Para!” – Gritei afastando-o repentinamente.
“O que houve? Eu fiz alguma coisa? Por favor, desculpa” – Perguntou desesperado.
“Não. Você não fez nada, eu... eu... eu preciso ir para casa” – Respondi já me levantando e tentando pegar minhas coisas.
Conversamos tanto, e ainda comemos, que eu nem percebi quão tarde era. Como ele mesmo dissera, poderia me dar uma carona até a estação de metrô, ou eu poderia simplesmente pegar um táxi, acionar o Uber ou mesmo ligar para o David. O problema é que sair àquela hora da noite talvez não fosse uma boa ideia, e além disso, já tinha avisado em casa que não voltaria.
Apesar de estar completamente envolvido em seu beijo, eu não podia parar de pensar no Jared, e senti um enjoo forte, quando senti sua língua dentro da minha boca. Eu queria outra pessoa. Meu pensamento estava em outra pessoa. Meu coração estava em outra pessoa. Ainda assim, por mais que eu amasse outra pessoa, ele nunca, jamais estaria livre para mim.
“Desculpa. Eu me sinto envergonhado” – Completei cabisbaixo.
Eu realmente me sentia mal. Me sentia mal por pensar em outra pessoa. Me sentia mal por não poder retribuir a ternura do beijo que ele me dera. Me sentia mal por querer fugir para longe dali. Me sentia mal por não conseguir me sentir bem. Apenas me sentia mal.
Através da sombra no chão, percebi quando ele se aproximou. Uma de suas mãos tocou minhas mãos, e a outra puxou meu queixo para cima, de deixando na altura de seu rosto.
“Está tudo bem. Mesmo. Eu não deveria tê-lo beijado. Não vai acontecer de novo, mas por favor, durma aqui. Eu realmente gostei de ter você aqui hoje” – Disse me fazendo pensar.
Eu deveria arriscar. Vi sinceridade em seus olhos, e sabia que ele não tornaria a tocar em mim. Eu precisava chorar, e por isso, simplesmente o envolvi em um abraço inocente e apertado. Senti seu peito pulsando contra o meu e me senti grato por ter alguém por perto naquela noite.
Passamos mais alguns instantes na sala de estar, até que ele me convidou para ir ao quarto, e finalmente dormir. Ele me entregou um pijama xadrez, e me deu uma cadeira para colocar minhas roupas. Seu quarto estava relativamente desorganizado, e ao lado da parede, próximo à porta do banheiro, um Fender esperava para ser tocado. Era um lindo violão marrom. Algumas partituras musicais estavam jogadas próximas ao instrumento, e alguns sapatos também. Tinha roupas próximas ao closet, assim como no chão do banheiro. Ele sentiu envergonhado, e tentou correr com a organização. Claro que não era um problema.
Vi quando se virou de costas, e ainda conversando comigo tirou sua camiseta, mostrando aquelas costas largas e brancas, com algumas sardas. Tentei disfarçar minha surpresa, quando sem titubear, tirou sua calça jeans escura, e não vestia nada por baixo. Tinha uma bunda grande e redonda, mas sem nenhum pelo. Tinha uma pinta na parte de baixo de sua nádega direita, e também tinha sardas ali. Era um bom pedaço de carne, pensei. Controlei minha excitação, e também tirei minhas roupas, para colocar o tal pijama. Não sei se ele reparou em meu corpo, se ignorou ou se simplesmente não se importava. Ele agiu com a maior naturalidade e descrição possível.
Deitamos na cama grande, e conversamos por mais um tempo. Adormeci. Não me lembro como, ou qual era o último assunto. Apenas morri naquela cama.
O domingo estava quente, e não reparei quando Andrew saiu da cama. Além do sol que atravessava a janela de vidro e me queimava o rosto, senti um cheiro de café que vinha do lado de fora do quarto. Me levantei, coçando a cabeça e ajeitando a roupa.
“Oh, bom dia! Fiz café para você. Dormiu bem? “ – Perguntou na agitação da cozinha.
“Aw. Muito obrigado. Não precisava se incomodar. E sim. Dormi muito bem” – Respondi pegando a xícara vermelha de café.
Não tinha me dado conta de que dormira até tão tarde. O relógio de cozinha denunciava a hora, e o sol do lado de fora queimava o meio dia.
Agradeci inúmeras vezes, mas expliquei que precisava correr. Não tinha tempo para ficar ali, porque tinha compromisso marcado com minha família naquele domingo. Na verdade, tinha que estudar para minha prova de piano, e John me ajudaria com isso.
Ele morava próximo da estação de trem, então não me era necessário pegar um táxi.
“Promete me ligar? “ – Perguntou ao me deixar na estação.
“Claro. Eu prometo. Obrigado de novo” – Respondi descendo as escadas ao metrô.
Não demoraria muito para que eu chegasse em casa, mas como o dia estava tão lindo, decidi não descer na estação próxima a minha rua, mas sim caminhar um pouco. O trajeto que faria em 30 minutos, fiz em uma hora e meia. Ainda assim, estava feliz. Tive tempo para pensar em tudo o que estava acontecendo, mesmo que por um pouco, fiquei feliz por ter bloqueado Jared de toda a minha vida. E mesmo sabendo que alguém demonstrara interesse na última noite, sabia que nada aconteceria, e decidi deixar Andrew como uma agradável noite de sábado. Nada mais que isso. Seria um tempo apenas para mim.
Quando caminhei o pequeno jardim que dava acesso à porta de entrada de casa, vi quando John me olhou pela janela, e apenas encarou David, sentado do outro lado da sala. Os dois estavam sentados em sofás diferentes, e pela disposição dos objetos na mesa de centro, mesmo que pela janela, deduzi que mais alguém estava na sala. Não me lembrava de termos combinado uma visita, e como eles eram extremamente organizados, teriam me avisado. De qualquer forma, eu morava ali, e teria que interromper a reunião, com quem quer que fosse.
Abri a porta. Tentei não acreditar o timbre da voz que me perfurara os tímpanos e atingira o coração em cheio. Caminhei três passos ainda relutante, e quase desmaiei quando o vi sentado contra a janela. Me senti doente do estomago, e minhas bochechas ficaram coradas. Repentinamente senti um enjoo, e literalmente me apoiei no corrimão da escada para permanecer firme. Eu estava irado.
“Eu não avisei que viria. Me desculpa aparecer assim” – Disse Jared se levantando do sofá e caminhando em minha direção.
“O que você está fazendo aqui? “ – Perguntei ríspido.
“Eu só quero conversar. Quero apenas explicar o que aconteceu” – respondeu me estendendo a mão direita, como comprimento.
Eu estava nervoso, e recusei seu aperto de mão. O que realmente queria era dar um murro em seu lindo rosto. Ou um apaixonado beijo em sua boca. Ao invés disso, apenas me sentei aos pés da escada, enquanto ele voltava para seu lugar.
Ele estava lindo. Era impressionante como ele era lindo e másculo. Sua beleza era estonteante, e mesmo seu modo de falar me deixava bobo. Enquanto David falava qualquer coisa, mesmo disfarçando, não conseguia parar de olhar para ele. Como o desejava!
David explicou que Jared e ele mantiveram contatos por e-mail, quando eu o bloquei de todos os meus contatos. Desde o começo, Jared manterá sua preocupação em como eu estava lidando com todo o stress, ou se precisava de qualquer coisa. Depois de nossa conversa na pizzaria, David acho que seria importante compartilhar que eu decidira ficar no país, e como o casamento já não era uma opção, eles precisavam encontrar uma outra solução.
“Quando eu disse que tem algo em você, eu estava sendo sincero. Tem algo sobre você que me faz querer tê-lo por perto. Eu te amo. Eu te amo mesmo. Infelizmente, tenho uma relação muito complicada com meu ex-marido, e você, na sua idade, precisa encontrar alguém melhor do que eu. Você é muito valioso para perder sua juventude com alguém como eu. Não tive a intenção de machucar seu coração, mas você precisa saber que, quando você se apaixonar por alguém, um dos dois, em algum momento sairá com o coração partido. David e eu temos conversado e só tem uma maneira de você ficar no país, e estamos dispostos a fazer isso” – Disse Jared.
Por mais irado que eu tivesse, senti meu coração em pedaços, quando vi que ele não conseguia controlar suas emoções. Ainda que desconfiasse de seus sentimentos, tinha algo naquele olhar que me fazia querer acreditar. Depois do tempo maravilhoso que tivemos juntos, ele não poderia ser um cretino a ponto de querer me machucar. Não faria sentido.
“E qual é a solução para que eu fique no país? “ – Questionei curioso.
“Faculdade” – Respondeu John.
Ah, sério? É claro que eu já tinha pensado na hipótese de estender meu visto de estudante, mas o grande problema é que isso já não era possível. Eu não tinha permissão para conseguir uma outra bolsa de estudos naquela universidade, levando em consideração o acordo entre as duas instituições de ensino. A única solução seria pagar os semestres na faculdade. Nos Estados Unidos, cada estado tem individualidade, e parte disso reflete a economia. Um morador da Califórnia, por exemplo, tem que frequentar uma faculdade californiana. Caso opte por uma universidade fora do estado, seria obrigado a pagar 3 vezes o preço que eu morador daquele estado pagaria. No meu caso, era ainda pior, porque eu vinha de um outro país. Um semestre para
“out-of-state” em minha universidade correspondia a $12 mil dólares americanos, que seriam mais que R$ 30 mil reais. E isso era apenas um semestre.
Claro que eu nunca teria aquele dinheiro todo. Era simplesmente impossível, e eu sabia disso desde o princípio. Como se esse não fosse o maior problema, o TOEFL também seria uma dor de cabeça. Para quem não sabe, o TOEFL é um exame de proficiência em inglês dificílimo. Para quem decide cursar uma graduação em uma país falante da língua inglesa, este exame é necessário. E sim, a universidade me pediria. Seria caro para fazê-lo, eu teria que resolver tudo em menos de um mês, e ainda teria a dor de cabeça de me preparar para o teste. Não. Não era possível.
“Não tem jeito. Já pensei nessa possibilidade” – Respondi, tentando não tocar no assunto financeiro.
“É sobre isso que a gente precisa conversar” – Disse Jared se ajeitando no sofá.
“Escuta, Leo. Eu não quero que você volte ao Brasil. Você já é como se fizesse parte da nossa família, sabe? Você fez com que a gente se envolvesse em sua dor, e não quero que você volte para casa. Não quero que você viva a infelicidade de mentir a todos sobre sua sexualidade” – Disse David, já emocionado.
“Você disse que quer ficar, e a gente está junto para te ajudar nisso” – Complementou John.
Eu estava me sentindo nervoso. Eles falavam muito, mas não me davam a resposta que eu buscava: como eu poderia ficar no país?
“O que eles querem dizer é que, se você disser que quer ficar, os três pagaremos toda a sua educação em uma universidade americana” – Completou Jared.
Pagar. Minha. Educação. Toda.
Demorei para entender que meus ouvidos não estavam mentindo para mim. Aqueles três homens que me conheciam a menos de um ano estavam dispostos a pagar milhares de dolares na educação de um estudante internacional apenas para que ele tenha tempo de viver sua sexualidade sem mentir para ninguém? Eles realmente estavam dispostos a investir um dinheiro pesado em alguém de quem eles talvez nem pudessem confiar substancialmente? Faria sentido que eles me amassem tanto, ao ponto de acreditar em mim daquele jeito? Será que eu realmente era tão importante para eles?
“É muito dinheiro” – Sussurrei enquanto encarava o chão.
“Os três temos dinheiro, Leo. Esse não é o problema. Apenas temos que ter certeza de que é isso que você realmente quer” – Disse David.
Eu comecei a chorar. Uma enxurrada de sentimentos descera em meu coração agora. A responsabilidade de aceitar aquela proposta louca, somados ao medo de estar ou não fazendo a escolha certa. Senti o medo de ligar para casa e dizer que não voltaria mais. Medo de que um dia eles simplesmente virassem as costas para mim e eu ficasse sozinho, em um país tão distante do meu. Estava com medo de fracassar. Medo de errar. Medo da incerteza que me aguardaria. E mesmo que decidisse aceitar, quem poderia me assegurar de que eu me daria bem na prova do TOEFL.
Depois de um silêncio deprimente, apenas sussurrei:
“Eu aceito ficar”.
Como que ensaiado, os três estamparam um sorriso de orelha a orelha ao me ouvir.
CONTINUA.