31/12/2002, terça-feira.
Angélica saiu cedo com Clarisse e Joana, foram fazer umas comprinhas pra festinha de Ano Novo que acontecia todos os anos e reunia amigos chegados. Para as garotas a farra estava por terminar, Luiza ligou cedo perguntando quando Marilia ia voltar.
— Pai... – sentou no sofá e deitou com a cabeça no seu colo – A mamãe ligou...
Ele estava lendo a bendita revista que nunca parecia terminar.
— Ela está bem? – deixou a revista de lado.
— Perguntou quando a gente ia voltar... – olhou para ele – Os pais da Joana tão querendo que ela volte no sábado... Marcaram passagem...
Era esperado que tudo um dia tivesse fim, mesmo que as três tenham feito planos mirabolantes para continuarem juntas não poderiam fugir da realidade e aquele mundo em quem viviam era uma criação deles.
— Joana me falou... – fez cafuné dos cabelos longos da filha – Um dia ia acontecer...
Ficaram se encarando sem vontade de falarem que tudo o pensado não tinha com o acontecer.
— Quero morar contigo... – Marília estava séria – Não quero voltar pra Recife, aqui é meu lugar...
Algumas lágrimas brotaram nos olhos da garota.
— E a faculdade filha? – ele também tinha vislumbrado a possibilidade de que ela ficasse com ele, mas não era assim tão fácil – E tua mãe?
— Eu tranco a faculdade, to só no primeiro período e depois a gente vê se consegue uma transferência – enxugou as lágrimas com a ponta da camisa deixando os peitinhos de fora – A mamãe tem a vida dela...
Gustavo suspirou e se recostou no sofá, já tinha conversado sobre essa possibilidade com Angélica que aprovou o desejo dele de ter de volta a filha.
— Luiza tem tua guarda, lembra? – a mão passeou na barriga dela – E você ainda é menor...
Marília sentiu o corpo arrepiar.
— Tenho dezessete anos e meio... Já sei o que é bom para mim – fechou os olhos quando ele segurou o seio esquerdo – E o melhor pra mim é ficar contigo...
Para ambos era muito melhor estarem juntos, principalmente depois que se descobriram e se amaram e se entregaram.
— A tia Angélica pode dar uma mãozinha na faculdade... Ela ensina no CEUMA e na UEMA... – ele sentiu o corpo estremecer – Diz que me quer contigo paizinho, diz?
— Você sabe que sim filhinha... Te quero como nada nesse mundo... – se curvou e lambeu as lágrimas salobras que corria no rosto, ela fechou os olhos e ele chupou secando-os.
— Você é minha filha e... E mulher! – ela riu e puxou a cabeça dele e se beijaram.
— Êpa! – levantaram a vista, Clarisse tinha voltado com a mãe – Ta rolando sacanagem com meu namorado?...
Riram e ela correu para sentar do lado dele, Angélica entrou carregando sacolas seguida de Joana também com sacolas.
— Pronto! Compramos tudo o que era preciso! – foi para a copa arrumar as compras com Joana.
Clarisse notou os olhos de Marília avermelhados e riscos de lágrimas babadas no rosto.
— O que foi? Aconteceu alguma coisa?
— Nada não Clarinha... – Marília sentou e arrumou a roupa – Só uns trecos sem importância.
Foi ajudar Angélica na copa e cozinha, Clarisse tirou o tênis e jogou no canto da sala, a calça jeans apertada foi parar na mesinha e ainda o sutiã em cima do aparelho de som.
— Pode juntar tudo e levar pro quarto, dona Clarisse! – Angélica entrou na sala – Aqui não é casa de mãe Joana!
— Mas é casa do meu... Nosso homem! – Angélica jogou uma almofada, ela se esquivou e juntou rápido a roupa rindo.
— Que foi que aconteceu com Marília Guga? – sentou do lado dele – Ela ta meio tristezinha e... Acho que andou chorando... – ele falou da conversa que tiveram.
— Olha! Se realmente ela for ficar, não tem problema... Arrumo uma vaga no CEUMA sem dificuldade nenhuma... – mas ela sabia que não era só isso – E... Sobre a guarda judicial a gente pode entrar com um pedido de nulidade... Já consultei uma amiga que disse ser fácil, fácil derrubar a decisão... E ela já tem quase dezoito anos... Ela mesmo pode requerer a emancipação...
Conversaram sobre as possibilidades e as possíveis complicações se a mãe não aceitasse abrir mão da guarda.
— Acho que Luiza não iria complicar, além do que... – olhou para a portada copa, a filha estava em pé escutando a conversa – Vem cá moleca!
Marília puxou uma poltrona e sentou de frente para eles.
— Olha Marília? – Angélica começou – Não vejo porque você não morar com teu pai e, se tua mãe não quiser deixar, a gente pode ir pelas vias legais e solicitar mudança de guarda ou, então, sua emancipação...
— Pois é filha! Mas acho que Luiza não vai querer brigar e... E a pensão que pago continuaria ser depositada como se você morasse com ela...
— Que pensão? – Marília se espantou – Pensei que...
Angélica olhou para Gustavo.
— Ela nunca lhe falou sobre a pensão alimentícia? – Angélica começou a desconfiar que Luiza não iria abrir mão das guarda com a facilidade imaginada.
— Não! – olhou pro pai – Até ela falou um dia que ia botar o papai na justiça para que ele pagasse pensão?
Gustavo olhou demoradamente para as duas, se levantou e foi pro quarto de onde voltou com uma pasta de plástico azul. Abriu e entregou para a filha.
— O que é isso? – recebeu e encarou o pai.
— São os recibos de depósito bancários da pensão alimentícia impetrada pelo juiz... – pegou a pasta e tirou os canhotos – Todo mês, desde que vocês foram para Recife eu deposito, na conta de sua mãe, o valor estipulado além de uma mesada para você.
Entregou o bolo de recibos colecionados por mês e ano.
— Mas... Mas porque mamãe sempre falou que o senhor nunca deu nada?
— Sempre filha, sempre venho depositando até o dia dez de cada mês deposito o equivalente a cinco salários mínimos da pensão e... – pegou o calhamaço e retirou alguns – Mil reais para seu colégio e despesas gerais.
Marília leu alguns, viu as datas e valores antes de devolver.
— Olha pai! – respirou fundo – Não volto mais pra morar com ela por nada nesse mundo! – voltou a chorar – Ela sempre falou que...
Angélica sentiu que era peça estranha e foi para o quarto chamando as meninas.
— É sacanagem pai... A mamãe... – tapou o rosto com as mãos e chorou.
Gustavo pegou a pasta e colocou no chão, puxou pelo braço e botou a filha no colo.
— Poxa filhinha... Eu não sabia de nada disso... – beijou a cabeça dela – Só mostrei... Nem devia ter mostrado...
— Tinha sim pai! Tinha de ter mostrado pra desmascarar ela... – fungou e assoou o nariz – Ela sempre me jogava na cara isso, que o senhor tinha se esquecido de mim e que não ajudava em nada...
Ele ficou acalentando a filha nos braços, não falou nada contra a mãe, não queria e nunca quis fomentar discórdia.
— Isso o que ele fez comigo... E contigo foi sacanagem! – enxugou aslágrimas – Era por isso que ela nunca deixou eu ligar pra ti... E quando tu ligava, ela ficava o tempo todo por perto... – olhou pra ele – Eu pensava que era porque ela gostava de ti, pai! Eu jurava que ela ainda tinha esperança devoltar pra ti...
Gustavo respirou fundo.
— Então está decidido! – afastou ela para poder olhar dentro dos olhos – Você não vai voltar, vai morar comigo!
Ela sorriu entre lágrimas e se abraçou a ele.
* * * * * *
Passaram a tarde toda preparando a festa, Marília parecia outra e não demonstrou que aquilo tivesse mexido demais com sua cabeça.
Pedro ligou e acertou que levaria os fogos de artifícios que estouraria meia noite. Angélica ainda teve de sair para comprar outras coisas e as garotasse encarregaram de arrumar as mesas e cadeiras. Gustavo deu uma de eletricista e colocou cordões de lâmpadas na área da piscina.
Antes das seis da tarde estava tudo pronto e foram ajudar Joana na cozinha. Angélica e Pedro chegaram quase no mesmo tempo.
— O que tem pra fazer? – Pedro tirou a camisa – Vamos ver onde vão ficar os fogos...
Gustavo e Pedro escolheram um lugar seguro de onde seriam soltados os foguetes luminosos.
— O Joel confirmou que vem... – Pedro e Gustavo pareciam mais crianças que as três garotas – Deve trazer bebidas... Será que não vai faltar nada?
Joana achou um absurdo gastarem tanto e terem comprado tanta comida para cinco famílias de amigos, mas não falou mais nada depois de Clarinha contar como tinha sido no ano anterior na casa de praia do tio Joel.
Oito horas começaram chegar os convidados: Joel com Mirtes e dois filhos (Claudionor e Fernanda), Roberto e Marlene com a filha Juçara e Milton com Renata e três filhos (Renatinha, Rodrigues e Cecília).
A bagunça se instalou na casa. Tinham decidido não contratar garçons nesse ano e que todos se virariam, assim teriam mais liberdade para as brincadeiras sem terem que estar se policiando o tempo todo.
— Filho! – Joel chamou Claudionor – Conversa com o Pedro e assuma os fogos, o Rodrigo vai te ajudar...
— Poxa pai? – Claudionor reclamou – Eu tinha combinado com o Rodrigo irmos pra casa do Ferdinando!
— E quem fica responsável pelos fogos? – Mirtes escutou a conversa do marido com o filho.
— Ta bom garoto! – passou o braço pelo ombro do filho – Sei que Martinha deve estar por lá, não é mesmo? – o filho confirmou – Vá! Deixa que a turma solta os fogos
As mulheres tomaram de conta das comidas e tagarelavam o tempo todo, contaram piadas e riram a valer.
— A Clarinha já ta uma moça, Angel! – Renata estava cortando abacaxi para enfeitar o pernil de porco – Ta de namoradinho?
Angélica riu e pensou em dizer que a filha e o padrinho estavam com um rolo, mas calou quando Joel entrou para buscar gelo.
— Tu ias cair pra trás se soubesse com quem ela está ficando... – falou baixinho.
— Pela tua cara imagino o tamanho do susto! – Renata sussurrou para que o amigo não ouvisse – Juçara me aprontou uma que foi o fim da picada...
Esperaram que o amigo saísse da cozinha e se sentaram, Mirtes e Marlene também se juntaram a elas.
— Fala logo Angel, quem é o namorado de Clarinha? – Marlene era a mais curiosa das amigas.
Angélica olhou para as amigas, não tinham segredo entre elas e sempre estavam juntas e se ajudavam desde a juventude.
— Tu acreditas que a pestinha ta com... – olhou para as amigas, um silencio total – Ta de rolo com Gustavo?
— O Guga? – Mirtes abriu a boca espantada – Mas ela não é afilhada dele?
— E Fernandinha não é irmã do Claudinho? – Renata rebateu.
— Poxa gente? O Guga tem idade de ser pai dela... – Mirtes sempre foi a mais puritana das amigas – E o Pedro?
— Ficou meio grilado no início, mas parece que não quer se meter...
— É! Não deu certo com a mãe, pode dar certo com a filha, né mesmo? – Mirtes se resignou e as amigas caíram na gargalhada.
Marlene se levantou e voltou com bebida para todas.
— Gente!... – serviu os copos – Tem um galho lá em casa...
Angélica lembrou que ela tinha falado algo sobre Juçara.
— Lá vem mais porrada! – Mirtes tomou a dose de uísque de um só gole – Será que a gente só se reúne pra falar dos rolos?
Riram e Angélica lembrou a todas que tinham jurado sempre serem o ombro amigo e que isso as mantinha unidas e sempre verdadeiramente amigas.
— É a Juçara... Acho que ela está trepando com o Roberto...
— Porra Marlene, como é que tu sabes que é com ele? – Renata era a mais nova dentre todas e sempre foi a mais afoita.
— A gente sabe disso minha amiga... – Mirtes tomou outra dose – Coração de mãe não se engana...
Ela falava com cátedra no assunto, tinha pego os filhos transando em casa e só não deu rolo maior porque as eternas amigas intervieram e acalmaramos ânimos.
— Ver não vi, mas venho percebendo umas coisinhas aqui, outras ali... – reabasteceu os copos – Vamos beber mulherada que o resto a gente dá jeito...
Emborcaram os copos depois que Angélica contou até três.
— Sabe de uma coisa amigas? – Mirtes levantou depois de tornar servir a todas – Pelo rumo do carro só Cecília e Clarisse ainda são cabacinhos na alcatéia! – levantou o copo – Vamos beber pelas xoxotas e bundas de nossos filhos queridos!
Todas gritaram e entornaram.
Desde a juventude era sempre assim, bebiam muito sem ficarem bêbadas com muita facilidade e, dentre os homens só Milton não agüentava o tranco da alcatéia, como gostavam de se referir ao grupo.
— Atenção queridas amigas! – Angélica subiu na cadeira – Tenho um comunicado oficial a fazer! – olhou para elas e sorriu – Só temos um cabacinho dentre todas as mulheres fodedoras! Clarisse passou para nosso time! Só falta dona Cecília!!!!
Apulpos e assovios, uma algazarra tomou conta do ambiente e todas queriam falar ao mesmo tempo.
* * * * * *
— Quem é essa moreninha? – Milton puxou Pedro – Ela é um pitelzinho rapaz?
— Cuidado Milton que isso é cria do Guga! – riram – Tu deves ter cuidado é com a Renatinha que está ficando um pedaço de mau caminho...
Milton empurrou o amigo simulando estar zangado, Roberto viu e ficou preocupado.
— Qualé gente? – separou os dois – Vão querer estragar a festa, é?
Mas os dois riram e se abraçaram e continuaram bebendo e tecendo comentários sobre todo mundo, na maior gaiatisse.
— E tu Berto?
— Que tem eu?
— Já ta tendo dor de cabeça com Juçara? – Pedro se afastou – Ta um mulherão de dar gosto...
— Essa não é pro teu bico cara... Essa não é pro teu bico... – continuaram brincando.
Escutaram a gritaria na copa.
— Ta tendo putaria por lá! – Pedro propôs um brinde – Gente! Gente! Vamos fazer um brinde especial...
Chamaram Gustavo.
— Este ano estamos completando vinte e sete anos que nos reunimos no ultimo dia do ano – olhou para os amigos – É isso mesmo gente, vinte e sete anos de amizade verdadeira, de bons momentos, de momentos tristes e sempre estivemos juntos para o que der e vier... Éramos onze e hoje só somos cinco. Uns voaram para outras praças, outros que ainda vivem perto da gente se esqueceram o quanto são importantes para cada um de nos e um... – fizeram silêncio sabendo quem era esse – Um partiu para os campos divinos há exatos cinco anos... Wilber, nosso irmãozinho que foi chamado pelo criador deve estarlá em cima comemorando com a gente e nos acompanhando nesse brinte junto com Margarida e o pequeno Tomáz...
Se calou, estavam todos emocionados ante a lembrança do trágico acidente onde morreram Wilber, a esposa Margarida e o filho Tomáz justo no dia seguinte de uma reunião anual quando o monza foi abalroado por trás e jogado na frente de um ônibus da Trasnsbrasiliana quando regressavam de Itapecuru, onde tinham se reunido na fazenda de Joel.
— A Wilber! – Joel levantou o copo e todos beberam em silêncio.
* * * * * *
O quarto estava a maior bagunça, sacolas amontoadas no canto, sapatos e roupas jogadas no chão e colchonetes em cima da cama.
— Menina? – Renatinha estava sentada no chão – Quer dizer que tu e o Guga tão de cacho?
Fernanda estava deitada por cima dos colchonetes, Juçara e Joana conversavam animadas e Cecília, sentada entre as pernas de Marília conversava com as três como se tivessem a mesma idade e não fosse a caçulinha do grupo.
— Essa pivete passou a perna em minha amiga... – Marília deu um tapinha nas costas de Clarisse.
— Quem manda a pernambucana dormir? – Renata piscou para Joana – E aí? Tu não fica grilada com isso não?
— Grilada porque? – Marília abraçou a pequena Cecília – Ele pode namorar e comer quem ele quiser que continua sendo meu...
— E tu já deu pra ele? – Cecília olhou para Clarisse.
As três riram e Renata deu uma bisca na cabeça da irmã.
— Sai daqui Ceci! – puxou a irmã – Isso não é conversa pra criança!
Clarisse e Marília defenderam a amiguinha.
— Deixa de ser besta menina? – Marília puxou Cecília – O que tem ela ficar com a gente?
— É mesmo Renatinha... Deixa Cecília aqui... – olhou para a garota – Dei! E... Adorei!
Riram e se empurraram.
— Não deu certo... Ele mora aqui e eu no Recife... – Joana olhou para o grupo conversando animadas no chão – Pode-se dizer que abri mão dele...
— Mas... Terminou tudo mesmo? – Fernanda apimentou e Juçara beliscou seu braço – Qual é Juçara? Só perguntei se não rolou nada mais...
— E tu achas que eu vou perder essa oportunidade amiga? – Joana riu da cara que Juçara fez – A gente tem transado sim... E ele transa como ninguém, menina...
— E a Marília também entrou na brincadeira? – Juçara estava louca para saber se Marília transava com o pai.
— Isso tu vai ter que perguntar pra ela! – Joana não iria contar um segredo que era só deles.
— Tu ta querendo é uma desculpa pra não se sentir... – Fernanda jogou bote.
— Assim como Fernanda, heim? – Juçara não era de meias palavras – Ou tu pensas que a gente não sabe que tu transa com o Clodô?
— Olha?! – Renata ouviu e cortou a briga no nascedouro – Nada de confusão gente, porra! – se levantou – A gente ta aqui pra nos divertirmos... Não interessa a ninguém se Juçara transa com o pai dela ou se Fernanda continua dando pro irmão. Merda Juçara! Vê se tu toma jeito garota, todo ano tu arruma um tro-ló-ló?
Juçara e Fernanda se pediram desculpas e Clarisse sugeriuque jogassem alguma coisa pra passar o tempo.